Assim Como na Vida...

Na elegante loja vendiam móveis de extremo bom gosto e preciosidades antigas.

No galpão que ficava na parte detrás da loja eram restauradas valiosas peças e fabricavam outras requintadas e caras.

Ela olhava a enorme e imponente estante numa mal disfarçada admiração invejosa e vã tentativa de aparentar desprezo.

- Ora - pensava – um brutamontes, isso sim!

Desviando o olhar encarou altiva o movelzinho de cabeceira esquecido em um canto, mais parecendo um criado que, mudo, poderia nem ser notado.

- Quanta insignificância – resmungava para si mesmo a soberba.

Passeando os olhos pela oficina deparou-se com a pequena mesa que há muito tempo deixara de ser o centro das atenções e logo ao lado viu o aparador, cujo brilho irreparável berrava aos olhos que o fitassem.

- Cafonalha ! – gritou ela em pensamento – aquilo era uma aberração, letal a olhos desprotegidos!

Em contraste ao ofuscante monumento ao mau gosto, lá estava a poltrona que, mesmo esfarrapada mantinha aquela irritante dignidade.

A cômoda até que tinha lá seu charme, a despeito de assemelhar-se a uma matrona beirando a obesidade.

Seus pensamentos foram interrompidos pelos ruídos dos operários que voltavam, aos poucos, da tranqüilidade e torpor que beirava o cochilo sedutor do horário de almoço já devorado.

O trabalho quase acabado, aquele mal começado e o material para os ainda não iniciados estavam separados numa desordem cuja organização só os trabalhadores compreendiam.

Ela, uma cristaleira de extremo bom gosto e delicadeza, expressos em seus finos vidros e madeira nobre de contornos sinuosos e raros, olhava com horror aquelas mãos grossas e de cor marcada por anos de trabalho pesado.

- Como poderiam essas mãos rudes pretender a habilidade de tocá-la e realizar os pequenos reparos em seus delicados encaixes? – pensava ela sentindo um calafrio de horror.

Apavorada, acompanhou os movimentos de um deles em sua direção já antecipando o desastre ultrajante de ver-se toda mal consertada e sua elegância perdida.

Observou o homem pegar o martelo e, com extremo alívio, viu-o virar-se e segurar firme com uma das mãos um velho estrado de suporte de colchões.

- Ora, que conserto haveria para aquelas medíocres ripas já enfileiradas e devidamente fixadas por simples e banais pregos? Se bem que alguns, de tão velhos e feios, já deveriam estar no lixo!– ponderou em silêncio.

Notou que o homem apontava um martelo para um deles que, saliente, desobedecia à rigorosa simetria dos demais.

- Quanto atrevimento – pensou irritada a esguia guarnecedora de finos cristais – prego teimoso! Não sabia o quanto incomodava assim, com a cabeça em total desalinho às demais? Um prego tinha que se portar de maneira que nem a mais delicada das mãos notasse sua presença na madeira!

Acompanhava, com satisfação incontida, o movimento da mão do homem martelando cada vez com mais força aquela ousada teimosia que, para seu assombro, ainda resistia.

Ela não teve tempo de ver o pedaço de madeira do estrado que, partindo-se com a força das marteladas no prego renitente, foi atirado como se de uma catapulta e acertando-a em cheio, transformou-a num amontoado de vidro e madeira.

Deixando de lado o martelo, o homem começou a recolher os pedaços de madeira jogando-os num canto qualquer.

Em seguida, com vassoura e pá de lixo retirou do chão os pedaços de vidros daquela imitação grosseira e barata que viera para a oficina em meio às relíquias a serem restauradas.

E o prego, ainda sobressaindo-se aos demais, foi esquecido. Não por muito tempo, ele o sabia.