O fim de um começo - Capítulo 3
Capítulo 3 – O fim de um começo
“Oito de agosto de 2004 – Sair de casa em meio ao desespero e meus pais me forçando a ficar na organização; eu, não quero.” Essa frase fora retirada de um dos escritos antigos que usei para compor o texto principal.
Nessa época trabalhava em um serviço que hoje chamaria de ‘mãe’. Era a sinecura que todos gostariam de encontrar. Andava perfunctoriamente de ônibus de um lado para o outro conhecendo lugares que, de outra forma, jamais conheceria. Alguns desses, é claro, poderiam ter ficado de fora, já outros, no entanto, não faziam a menor diferença. Entretanto, havia lugares que poderiam ser por mim considerados um segundo lar.
Praia de Mauá, por exemplo. Localizada em Magé, região Metropolitana da baixada fluminense, fica a cinco metros de altura em relação ao nível do mar e tem o privilégio de ter a primeira estrada férrea do Brasil. Gostava da viagem pra lá. Era quase sempre a mesma coisa: descer na praia da Coroa, em frente à padaria, no segundo ponto depois do bar Amarelinho, e andar até a areia. Uma praça e um córrego sujo que levava até o mar. Culminando em outro bar, que escondia em seus balcões envidraçados, apetecíveis salgados fritos na hora. Tudo imundiçado pelo esgoto, mas isso era apenas um detalhe que concitava ainda mais o meu estômago. O ponto de ônibus, coberto. Alguns brinquedos. Sujos também, mas, não tanto quanto o meu trabalho. Vou explicar.
Durante as viagens, eu vigiava o serviço dos rodoviários. Se cometessem infrações, eu anotava a hora e o local e preenchia relatórios e mais relatórios de comunicações de ocorrências e enviava para a garagem através de um contato que tinha lá dentro. Um fiscal que trabalhava uniformizado, mas prestava os dois tipos de serviço. Eu era fiscal, mas à paisana, chamado “secreta”. Apreciava a viagem enquanto que, de soslaio, reparava nos danos cometidos contra os passageiros.
A função de secreta deixa de ser secreta quando o secreta, secretamente, faz muitas ocorrências, comprometendo demasiadamente os demais funcionários. Eles começam a desconfiar e a perceber que sempre que determinado passageiro está no carro, suas falhas são apontadas ao seu superior. Dia após dia, mês após mês. E bingo! Acharam o suspeito. Lembro-me de ter feito em um só dia 31 comunicações e, dessas, a maioria era grave, tal como carona em que o passageiro paga o valor da passagem, mas o trocador não roda a roleta em vista de o passageiro ter entrado pela porta da frente devido a algum motivo qualquer, como entrar com bolsas pesadas.
Eles erram e você não resiste à tentação. Escreve. No fundo você não quer escrever, mas tem algo mais forte. A vontade de fazer justiça. Essa vontade faz perder o medo de cortarem seu dedo (já fui várias vezes ameaçado), ou de te cercarem para dar uma sova. (Ouvi uma historia estranha que tenho de confessar que duvido de sua veracidade. Um antigo funcionário que atuava como secreta, foi surrrado e queimado vivo por seus “colegas” rodoviários).
É uma questão de dom. Eu fazia bem aquele tipo de trabalho e, em seis meses parecia que já tinha uns trinta de profissão. Não era talento para ser X-9, mas para justiceiro. Certa época da minha vida, na escola, fui nomeado olheiro de turma, não era bem assim que éramos chamados, mas preciso me proteger. Uns “amigos” aprontaram pra valer e me contaram. Não pensei duas vezes em entregá-los e ninguém nunca descobriu. Em contrapartida, anos depois, encobri erros muito mais graves de amigos de verdade que fizeram por merecer a minha confiança. (Contrariando a tal lavagem cerebral).
Apesar de não parecer, tudo isso tem a ver com o tema central, pois entregar o errante era também “norma bíblica” e sempre perturbou a minha mente. Duvida? Então leia:
“Levítico capítulo 5 versículo um: ‘Ora, caso uma alma peque por ter ouvido uma maldição pública, e seja testemunha, ou tenha presenciado isso ou veio a sabê-lo, então, se não o relatar, terá de responder pelo seu erro. ‘” (Citação da Tradução do Novo Mundo)
Na prática isso é horrível e, quando me refiro a estar na organização, é estar por livre e espontânea vontade debaixo desse arranjo. Mas sabemos que lá dentro não existe livre e espontânea vontade. Só existe uma discreta, porém eficaz, lavagem cerebral. As pessoas (os irmãos) acabam ficando condicionados a prestar muita atenção na vida dos outros com o fim de denunciar os erros por eles cometidos. Até mesmo quem está fora, usamos o termo desassociado, ainda fica com resquícios desse tipo de comportamento.
Em uma ocasião, eu e um grande amigo, Manoel, grande em todos os sentidos da palavra, fomos a um concerto de Rock na região onde moramos. Não éramos drogados ou coisa que o valha, mas sabíamos que muitos iriam para esse tipo de lugar apenas com esse objetivo: usar drogas. Gostávamos do som, diga-se de passagem, gosto até os dias de hoje. Sempre me atraiu o estranho, o escuro, o oculto e o de difícil acesso. Para a maioria das pessoas é muito difícil entender o complicado. Isso em todos os aspectos da vida. E na música não poderia ser diferente. Músicas fáceis de entender são as chamadas músicas populares. O rock, principalmente no Brasil, não tem um entendimento adequado, pois, aqui, não aprendemos música na escola. Acabam preferindo as ‘popozudas’, o ‘ah, eu to maluco’, o ‘senta gostoso’, dentre outros piores. Mas só porque são fáceis de serem entendidos. A mensagem é clara. A música é dançante e simples. Contagia, contamina e dissemina. Igual a um vírus. Já pensou se funkeiros e pagodeiros fossem tentar entender o conceito idealizado em Metropolis – Scenes from a memory, álbum conceitual de uma banda de metal progressivo, chamada Dream Theater? É um disco de música que conta uma estória espetacular de um analista que faz a regressão de um de seus pacientes e descobre que ele era o amante da esposa de seu paciente, isso em outra vida! No decorrer da narrativa, a música parece grassar em nossas mentes com seus acordes intrínsecos e modulações insanas.
Voltando ao concerto de Rock, o nosso principal problema naquele dia, quer dizer, noite, não foi o fato de ter um dos irmãos, embora estivesse desassociado, por perto, não foi o fato de os anciãos, ou pastores serem ‘cabeçudos’ e animais, desinformados e preconceituosos, ou simplesmente terem uma rixa e implicância quase natural com todo aquele que professasse ser jovem ou aparentasse ser intelectual. Nosso principal problema foi que o lugar onde aconteceria o concerto era bem na região onde morávamos. Esse foi nosso erro. O Manoel havia saído no campo pra falar para as pessoas de Deus e Jesus naquele mesmo dia, há algumas horas atrás. Naquela mesma quadra em que se realizaria o show. Muito cara-de-pau.
Foi minha primeira experiência em um point de Rock. Foi estonteante. Magnífico. Ouvindo, sentado em uma daquelas mesas de bar, de metal, ‘Smells like a teen spirit’, do Nirvana, composta e cantada pelo suicida Kurt Cobain. Ao redor, pessoas semiloucas que de loucas não tinham nada. Eram loucas para os padrões da sociedade ignorante e pobremente capitalista como o Brasil. Tudo bem que só vestiam preto, fumavam e estavam bêbedas de cair. Mas isso não justifica tamanha ofensa.
Certamente eu era um intruso, me sentia como um gato entre os pombos, pois nunca havia estado em um lugar assim. Mal sabia que ainda estaria por andar em lugares muito piores. Aquilo seria o começo de uma Era de escuridão, que me atrairia para o submundo do proibido e me faria ser o que hoje sou. Transcenderia os limites da razão e me faria crescer para a vida e me preparar para a morte. Estava naquele momento, comprando uma passagem de ida para uma viagem que muitos não voltavam. Nem imaginava que um dia me sentiria em casa em lugares como aquele. Enquanto me perguntava sobre o porquê de nunca ter tido coragem para ir a um concerto de Rock, o guitarrista caiu do palco, batendo com a cabeça na caixa de retorno e espalhando sangue por todos os lados. A banda teve de cancelar o restante do show, mas outra entrou no lugar. Não me lembro bem, mas acho que era um cover do Marlynin Manson. Aquele cara que arrancou os dois pares de costelas suspensas com o intrigante objetivo de acariciar oralmente seu órgão genital. Fiquei me sentindo um pouco mal, já que o sangue ainda estava jorrado no chão embora estivesse coagulado, mas ninguém parecia lembrar-se do que havia acontecido. Imagina hoje em dia, anos depois. Acredito que nem mesmo o próprio guitarrista lembre-se do que houve com ele. Não deveria ficar surpreso. Ele bateu a cabeça.
Naquele primeiro dia, jamais poderia ter imaginado pessoas como aquelas sentindo minha falta se eu não tivesse aparecido. Perguntando pelo meu nome e sabendo coisas sobre minha vida. Conjecturava com Manoel, em muitas ocasiões, sobre como eu estaria daqui a cinco anos. Sempre me pegava falando a mesma coisa. Conheceria muito mais de música e músicos, bandas e cantores. Tocaria com muito mais habilidade e perícia e teria um emprego estável. Triste ilusão. Nunca aprimorei minhas técnicas com a guitarra, tampouco formei uma banda. Embora estar ali, vendo guitarristas tocando e bandas mostrando o seu trabalho, tenha despertado em mim vontade de fazer o mesmo, faltou-me coragem para ir adiante em face dos obstáculos impostos pela vida. Não desejava a música deles, as roupas deles ou as bandas deles. Queria estar ali com meu som. Minha banda e meus amigos apoiando. Outra dura desilusão. Anos depois, percebi a dificuldade em distribuir umas demos para uma meia dúzia de amigos e, pior, fazê-los ouvir.
Toda a lavagem cerebral ao qual fui submetido estava escorrendo pelos ralos do clube. Escorria com a cerveja choca e com o suor da galera. Misturava-se com as guimbas de cigarro que jaziam pelo chão. Ao descer pela galeria do esgoto, toda aquela psicologia barata de fazer o que é certo para agradar a Jeová, encontrava com os ratos. Agora, aqueles ratos vestiriam sua roupa nova, engomada, e iriam para o Salão do Reino. Usariam gravata e seria vermelha com estampas azuis, com um desenho tipo triângulos espalhados pelo corpo do início ao fim do tecido. O terno deles seria azul, combinando com a parte azul da gravata, contrastando com a social branca, básica, com as mangas compridas. Claro que, para completar, você deve estar desejando ler sobre os sapatos dos ratos, mas, terei de frustrá-lo, pois ratos não usam sapatos.
Quando eu era mais jovem, tinha o profundo e sincero desejo de servir em Betel, a sede dos ogros no Brasil. Mas, no momento que ouvi Mr. Crowley, do Ozzy Osbourne, percebi que aquela vontade tinha se transferido para o rato gordo que me flertava com seus olhos de peixe morto embaixo do balcão de bebidas a minha esquerda. Mas uma pena seria pensar que os ratos mal conseguiriam chegar até a esquina devido à ação dos gatos opositores e caçadores que os cercavam. Esses gatos tinham como prato preferido: ratos. Ratos de terno. É assim que os chamo. Ratos de terno.
No dia oito de agosto de 2004, eu estava trabalhando, pra ser mais específico, estava em um bairro de Caxias, Taquara, do qual, diga-se de passagem, eu gosto muito, enquanto lia uma missiva em desabafo de meu pai destinada a mim. Ao ler aquela porcaria de carta, senti meu estômago embrulhar de uma forma que nem cinco garrafas de batida de pêssego fariam. Dentre outras ofensas, estava citando meu cabelo, que estava crescido, minha barba, que sempre gostei de deixar por fazer por motivos estritamente pessoais e meu comportamento, chegando tarde em casa, gastando meu dinheiro com equipamentos para a guitarra e com a mensalidade da escola de música, que, na verdade, era semestralidade. Lançou também críticas violentas à minhas roupas pretas com estampas de bandas de Rock. Enquanto fumava um cigarro, prosseguia na leitura que, a cada linha me transtornava ainda mais.
Gostava da Taquara. Sinto saudades de lá. Os ratos, nesse bairro, durante uma época, andavam nos ombros dos roqueiros. Ratos brancos que fascinam qualquer pateta que quer parecer mau. Assustam as pessoas na rua. Não os simpáticos ratinhos brancos, mas os babacas de preto que, só por estarem de preto, já estavam a ofender a nação roqueira do resto do mundo com sua conduta chula e banal. Suas mentes vazias e sua falta do que fazer. Não eram tão vazios, pois andavam com umas meninas bem jeitosas. Acostumado estava de ter que encarar dragões nos points de Rock da vida e, a essa altura, achava qualquer menininha jeitosa uma princesa. Mas eu quero crer que toda aquela pose de malvados era só para aparecer mesmo. Não conseguiriam assistir tropa de elite até o final, ou pelo menos não sem se sujarem. Pelo menos não até a parte que os recrutas cantam: “Homem de preto o que é que você faz? – Eu faço coisas que assusta o Satanás! – Homem de preto qual é sua missão? – Subir na favela e deixar corpo no chão!” Não, definitivamente, não. Mas se conseguissem, enfartariam na parte da tortura com a sacola na cabeça.
Voltando na história com meu amigo Manoel, lembro-me do tamanho do sermão que recebemos por estarmos naquele lugar. O tal desassociado que nos viu, nos denunciou, como se ele também não estivesse no erro e tomamos uma chamada. Confesso que achei tudo muito patético. Embora estivem aparentando preocupação disfarçavam muito mal. No fundo sabia que estavam felizes por pegarem um erro meu. Imaginavam perguntas perspicazes para sondagem e lançavam pérolas de ignorância, como de costume.
Em 2002, antes do ocorrido, passei pelo que eles chamam de comissão judicativa. O que vem a seguir foi extraído de A Sentinela 01/12 de 1981 páginas 22 a 28, sem permissão, óbvio.
REPREENSÃO DADA COM A PALAVRA DE DEUS
8 Quando uma comissão judicativa se reúne com respeito a uma transgressão, ela procura com oração a orientação de Jeová. Dum modo apropriado para pastores amorosos, os anciãos considerarão pacientemente com a pessoa o problema ou a transgressão que parece haver. (Efé. 5:1, 2; 1 Ped. 5:2, 3) Mesmo quando há testemunhas para confirmar a transgressão, a comissão judicativa incentiva a pessoa a falar francamente não só sobre o mal, mas também sobre o que levou a ele e o que pensa sobre isso. (Deut. 19:15; João 8:17) Por que é isso necessário?
9 Embora os anciãos que ouvem o caso determinem a culpa havida ou convençam alguém da transgressão, seu interesse primário é ajudar seu irmão cristão, que se desencaminhou. Querem induzi-lo a arrepender-se, para que venha ‘refrigério da parte da pessoa de Jeová’. (Atos 3:19) Se a pessoa não admitir o erro, não reconhecer a natureza grave dele, nem vir a necessidade de se arrepender, eles talvez tenham de apresentar ‘evidência convincente a respeito do seu pecado, e a respeito da justiça’. (Veja João 16:8.) Mas não devem ser vingativos ou duros quando dão tal repreensão piedosa. A Bíblia exorta: “Repreende, adverte, exorta, com toda a longanimidade e arte de ensino.” (2 Tim. 4:1, 2) Pela repreensão firme, bondosa e paciente talvez consigam atingir o coração do pecador, ajudando-o a odiar o erro e a retornar a Deus. — Jer. 3:12, 13.
10 Podemos aprender algo do exemplo de Esdras. Ele mostrou claramente aos judeus o erro deles. Não tinha por objetivo primário envergonhá-los, mas fazê-los parar, atingir o coração deles, induzi-los a odiarem o erro e a se arrependerem. Eles precisavam confessar-se a Jeová e agir em harmonia com isso por fazerem o possível para anular o seu erro. (Esd. 10:7-14) De maneira similar, a comissão que trata dum caso de pecado grave desejará ajudar o transgressor a compreender a gravidade do mal e a sentir no coração a necessidade de se arrepender. — Isa. 1:18.
Baseado nessas informações note como eles introduziram o assunto: “Alguns, irmão Antônio, como nós, permanecem fiéis. Já outros, como foi o seu caso, precisam pecar para aprender.” Dentre milhares de asneiras por eles faladas eu destaco essa: “Se você tiver outra oportunidade de ter relações sexuais com uma mulher, você o terá?” Não tenho certeza, respondi. “Mas esperávamos que você tivesse certeza. Por exemplo, se eu te perguntar: ‘você teria relações sexuais com um homem? ’” Fiquei furioso com a estúpida comparação, mas não tinha outra opção senão fazer o jogo deles, pois queria o perdão deles, senão perderia o contato com meus amigos, já que a desassociação significava deixar de falar com todos enquanto permanecesse nessa condição. Não, respondi. “Essa é a certeza que queremos que você tenha. Pensei comigo: “Bando de viadinhos que não fodem querendo que me enquadre no rol deles.”
Não agüentava mais ouvi-los nem durante as reuniões muito menos ali, sendo julgado por animais inúteis e ignorantes. Imperfeitos. Incompetentes para realizar seu trabalho de liderança e pastoreio. Incapazes de controlar a própria família. Ressoavam ainda pela região as histórias antigas do terrível estupro da filha de um ancião pelo seu próprio pai. Além de tristes mal-entendidos ocorridos por sua inaptidão natural. Mal sabiam ler e falar o seu português correto. Como poderiam me dizer o que fazer da minha vida?
Daí em diante as coisas só foram piorando. Digo piorando porque sempre gostei de ser uma testemunha de Jeová. Não gostava de ter as pessoas me dizendo o que fazer. Nunca gostei de ver ninguém me julgando ou a meus amigos. E era o que mais via.
Já que o trabalho me dava certa estabilidade financeira, não o suficiente para me ver livre dos julgamentos de meu pai, mas o bastante para outras coisas, entrei na escola de música. Comprei um grande motivo para a tal carta que estava a ler na Taquara.
A Villa Lobos era uma escola de verdade. Com professores de verdade. Mortos. Mas com instrumentos de verdade e com música de verdade. Gostava de cada pedaço daquele lugar. Lembro-me das escadas que, ao tocar determinada nota, com a voz mesmo, devido a alguma projeção acústica que desconheço, fazia o som espalhar pelas paredes. Ficávamos assustando os outros, dizendo que era o fantasma do maestro Villa Lobos. Até quando ia ao banheiro, costumava a me emocionar. As paredes, o piso, as salas, o som que vinha de dentro de cada uma delas e o principal, os alunos que rodavam sem rumo pelos corredores. Um mais louco que o outro. Toda vez que lavava minhas mãos no lavatório da escola, percebia escorrer pelo ralo toda a vontade que tinha de servir a um Deus e sua obra, sua causa para com a humanidade. Meu único dever para com a sociedade era compor com o objetivo de acalmá-los de sua dor.
Sempre que estava fora de casa a vida era muito agradável. O problema era chegar. A Bíblia tem regras e padrões que são ainda mais endurecidos pelo homem moderno. Ao me ver fora e bem distante desses padrões, meus pais enlouqueciam. Mas não era pra tanto já que eles nunca me foram exemplo de conduta casta. Nunca haviam sido etéreos em seu proceder. Não é qualquer um que consegue seguir à risca esses padrões, tanto que têm várias igrejas ‘moderninhas’ montando um novo padrão de adoração. Um bando de pacóvios cantadores engravatados que amam fazer barulho se proliferam em meio à sociedade cristã. Trovadores e boêmios que saem às três da manhã pra falar de Jesus, não sei pra quem, já que a essa hora, estão todos, ou quase todos bêbados. Creio que o que eles querem é uma desculpa pra sair à noite.
Melhor que esses loucos que pregam a enganação das riquezas e da prosperidade, diferentemente de Jesus, o pobre filho do carpinteiro, estão os fanáticos membros do Opus Dei que aderem à mortificação corporal para relembrar do sofrimento de Cristo e reafirmar que são imperfeitos e pecadores. Desrespeitam sua vida por se mutilarem. Apanham, eu diria, por sua categórica culpa. Quem é pascácio a ponto de se mutilar só pode ser merecedor desse tipo e tortura. São surrados por seu próprio censo de justiça, cega, e surda, e muda, e retardada, e coxa, em uma cadeira de rodas sem rodas e com cactos no assento.
Por isso sou ateu. Conhece a lei? Levítico capítulo 19, versículo 28: “E não vos deveis fazer cortes na carne em prol duma alma falecida e não deveis fazer tatuagem em vós. Eu sou Jeová.” Ninguém cumpre nada que não seja do seu próprio agrado. Os ‘cabeçudos’ dos pastores que me perseguiam só pregavam a castidade, porque eles conseguiam segui-la. Eram eunucos, semi-invertebrados e conservados em uma bacia de formol. Não bebiam, não fumavam e não metiam. Podiam cobrar isso dos outros. Então, martelavam nessa tecla.
Para mim, foi o fim de tudo. Não saía mais com irmãos de verdade, só com enganadores que professavam ser uma coisa, mas na verdade eram outra bem diferente. Tudo o que eu aprendi e aceitei até aquele momento foi jogado com aqueles ratos de terno. Estava morto. Assim como os demais. Pessoas mortas que não sabem a diferença entre a sua esquerda e a sua direita. Fazem errado porque não foram apresentados ao certo e, se fossem, não o reconheceriam. Ou talvez o capariam para que este não reproduzisse e não voltasse para pertubá-las novamente. Mal sabia que o pior ainda estava por vir.
Para determinadas pessoas, se o certo pudesse se personificar e aparecer na sua frente, elas o pegariam e colocariam um manto púrpura nele e o açoitariam. Provavelmente pegariam um chicote curto com várias correias, nas quais lascas de ossos de ovelhas e bolinhas de ferro seriam amarradas de maneira muito organizada para que, quando o surrassem com toda a sua insana força, derivada de um estado mental perturbado e psicótico, causasse-lhe profundas contusões e cortes nos tecidos cutâneo e subcutâneos. Enquanto as fustigações continuassem, as lacerações dilacerariam os músculos próximos ao esqueleto e produziriam tremulantes tirinhas de carne viva. Depois disso, zombariam com ele, o certo, perguntando-o: “Certo, está certo que és certo?” Para não ofendê-los com sua pronúncia excessivamente apurada, ele se calaria.
Ainda tem dúvida porque é tão difícil ser certo nos dias de hoje? Isso é a dor.