Intercâmbio Cultural
A noite prometia paz. Sentei-me em frente ao computador, abri um documento em branco no editor de texto e comecei a escrever sobre a boa música popular brasileira. Comecei falando dos grandes ícones: Caetano, Gil, Chico, Milton, Elis, Djavan e fui evoluíndo a idéia até os jovens talentos revelados já no século XXI: Isabela Taviani, Eliana Printes, Ana Cañas, Mart’nália, Vander Lee... O texto ia ficando gostoso de se ouvir quando, de repente, uma voz invade meu passeio musical com um microfônico: “alô, som! alô, som! alô som!”. Este “mantra” me traz boas recordações, pois que já andei pelos palcos da vida, mas também me deixa apreensiva, nunca se sabe o que virá a seguir. E meus piores temores se confirmaram. Após mais alguns testes, a banda iniciou sua apresentação com nada menos do que música sertaneja, daquelas letras melosas cantadas quase aos uivos. O marido já dormindo, não posso aumentar o volume do som. Fecho todas as janelas, só para perceber que deveria ter investido mais em isolamento acústico. Sem condições de me concentrar em Eliab Lira, decido tomar um banho... Quem sabe neste intervalo não mudam o estilo? Não mudaram, mas ao menos levantaram o nível um pouquinho: sertanejo universitário. O ritmo alegrinho deixou-me um pouco mais confortável em meu desterro cultural e decido apurar os ouvidos. Pesco alguns versos, os nomes de algumas duplas, pesquiso na Internet e encontro até umas letrinhas bonitinhas. Acho graça da idéia que me invade: estou fazendo turismo musical. Eu, que sou bem exigente com a qualidade do que escuto, percebo que pode haver alguma beleza escondida no que sempre considerei lixo. Minha divagação é interrompida por uma seqüência de axés. Tento imaginar o que fiz nas encarnações passadas para merecer isso, mas, ainda revestida de espírito aventureiro, aproveito para prosseguir minha viagem. A batida dá mesmo vontade de dançar, é envolvente e, também nesta seara, identifico alguma verdadeira poesia escondida. O mesmo acontece com os pagodes, bem interpretados em seguida.
Impressionante que, por conta do meu preconceito, acabei me privando de conhecer alguns bons autores. Penso que, não fosse o apelo comercial desses ritmos mais populares, eles poderiam compor boa MPB. Ver-me forçada a este ostracismo da boa música não foi tão ruim afinal. Serviu para mostrar-me que não devo ser tão rigorosa com as minhas escolhas e preferências. E isso pode ser observado em outros aspectos de nossa vida. Quantas vezes nos fechamos ao novo, ao diferente, por pura convenção? Como saber o que é bom ou ruim, certo ou errado, se me recuso a ter contato com o que não me é reconhecidamente bom. Em tudo é possível identificar alguma coisa boa e é importante não assumir uma postura maniqueísta diante de nosso cotidiano.
Enfim diante dessa experiência reveladora, decido baixar um pouco a guarda, reduzir minha resistência. Enquanto penso isso, uma nova seqüência se inicia: “créu”, “tô ficando molhadinha” e por aí vai. Diante de tão forte argumento não há decisão que se mantenha e concluo que um pouco de restrição também não é de todo ruim.
Amanhã, sem falta, compro fones de ouvido.
Imagem daqui.