O Dadaísmo de Gabriele
Então fechei o livro e fiz mais café. Algo do além impregnava as paredes do meu quarto e não me deixava ler. Li e reli a mesma página mais de três vezes sem entender uma única palavra. Sabe-se lá quantas almas habitavam aquele apartamento junto comigo e se incomodavam com a minha presença. O mar continuava lá fora, com o seu negrume noturno. Abri a janela pra sentir seu cheiro. Queria olhar a lua, mas o céu estava cheio de nuvens avermelhadas e sombrias. Tudo ali era propício à depressão, à taciturnidade. Senti um breve faiscar de ânimo dentro de mim: era tudo o que eu precisava sentir para conseguir voltar a escrever. Sorvi o café mansamente, apreciando seu sabor e sua temperatura; o ar blasé que ele transfere para o meu estado de espírito é sublime. Coloquei uma bermuda jeans e uma camiseta branca, peguei o maço de cigarros e caí na noite, descalço. Queria sentir a pedra portuguesa, o asfalto, a ciclovia e depois a areia nos pés. Acendi um cigarro e joguei o restante do maço com seus dezenove habitantes no lixo. Era a minha técnica pra tentar parar de fumar. Estava ali no litoral por opção. Uma mudança de ares se faz necessária às vezes. Quando chegou o limite de aceitação da minha anterior realidade, não pensei duas vezes e larguei aquele trabalho ingrato, joguei algumas peças de roupas numa pequena mala e escolhi minha cidade-destino na rodoviária. E cá estou, há duas semanas numa cidade estranha especulando se o que as pessoas sonharão durante a noite se tornará realidade um dia. Eu não conseguia sonhar há muito tempo. Não sei, de repente dormir se tornou apenas um intervalo entre um compromisso e outro. Não tinha mais fantasias, não tinha mais historinhas com seres voadores, com amores intangíveis sendo tocados na névoa do sono. Andando na calçada, sentindo o solo nos pés, o vento no rosto, o cheiro de sal nas narinas. Dois carros caros passam e buzinam em deboche. De um apartamento de luxo me jogam pedras de gelo. Parece que as pessoas mais favorecidas sentem prazer em impor o mínimo que seja de humilhação para aqueles que, aparentemente, têm menor poder aquisitivo que elas. Parece, mas posso estar enganado. Talvez sejam apenas desmiolados, psicopatas latentes, sofredores de carência anal que buscam na chamada de atenção alheia sua válvula de escape. Não os culpo. Nascem, têm os melhores brinquedos, vão para colégios particulares. São condicionados à mesma burguesia do vizinho, que olha o que o outro tem e o imita. Massa de manobra, bom preparo, faculdades caras, carros, nada de trabalhar antes de estar formado, a ralé, a massa, o proletariado que lhes sirva de carpete para que seus egos ocos se limpem. Encontrei um pedaço de caibro na areia e me sentei em cima dele, pra não sujar a bermuda. Nos bolsos, o dinheiro pra mais duas semanas de hospedagem e comida. Precisava arrumar um emprego. Vendedor de automóveis, faxineiro, caixa, atendente de quiosque, vendedor de tapiocas. Chega-se a um estágio da miséria, da escassez de recursos e esperança que pensar num estágio dentro de uma multinacional é tão impossível como colocar a água de todo o mar num balde furado. Nada de televisão de tecnologia de ponta, quarto com ar condicionado, poltrona de couro sueco. Um quarto com uma cama, uma cozinha com um fogão e um bule e uma sala com uma escrivaninha era a minha realidade. E eu me agarrarei à ela com a maior força que for possível. A minha realidade, do agora, nada de realidades inventadas, pré-moldadas numa massa fraca e inconsistente, que se despedaçam com facilidade. Eu estava ali pra mudar, pra galgar, pra fazer diferente, arranjar algo pra me sustentar, depois pra me içar à cargos maiores, encontrar um amor, alcançar o nirvana patriarcal, ter um pedaço de terra e tempo pra escrever, escrever, escrever e escrever. Ou coisa que o valha. Três rapazes com seus vinte e poucos anos vêm em minha direção. Pedem cigarros. Pedem minha carteira, meu dinheiro. Não pareciam precisar de dinheiro. Depois tentam me forçar a lhes entregar o dinheiro que recusei a dar. Entramos em luta corporal. Eles em três e eu só, com o pedaço de caibro na mão e três anos de vale-tudo nas costas. Voltei pra casa, esquentei o café e fiquei olhando pro mar por um longo momento. As paredes continuavam me hostilizando com suas almas de putas, pescadores, contrabandistas, costureiros, estelionatários e sequestradores. A lua deu as caras. A polícia continuava na praia procurando o agressor dos três bastardos abastados que estavam bêbados, semi-inconscientes. Semi-mortos. Fechei a janela, me sentei no sofá e consegui escrever um conto de oito páginas. Falava de um cara que conquistava as mulheres mais perfeitas e impossíveis da cidade e enjoava delas assim que elas declaravam o mínimo de sentimento por ele. Escrevi de uma vez só. É engraçado como a história invade quem escreve, sem permissão nenhuma, e faz do escritor o que quiser. Mas ela nunca traz consigo o título. Peste. A campainha do apartamento é tocada. Três da manhã. Quem seria? Falei pra esperar e escrevi o título no pé da folha: O Dadaísmo de Gabriele. Sorri pra folha e fui abrir a porta, sabendo que não deveria, nunca, tê-la abrido...
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Obrigado pelas cinco palavras, Gá!