VERGONHA ALHEIA? EU SINTO! - PARTE II
Eu sinto vergonha alheia e você?
Estamos aí para as cenas da segunda parte de "Vergonha alheia? Eu sinto!". Claro que seriam infinitas e indiscutivelmente narráveis, no entanto, este espaço se tornaria temático.
Último dia de férias com passeio no calçadão da capital do chopp pra matar o tempo. Aquela entradinha no mercado municipal é inevitável quando estou na companhia de minha mãe.
No calor de pleno inverno às três da tarde é bem comum que pessoas procurem um lugar para tomar uma bebida qualquer que cesse a sede. Bebida que logo pede aquela coxinha de frango ou qualquer um desses salgadinhos curtidos no óleo de semanas. Foi o que presenciamos - minha mãe e eu. Um rapaz matava sua fome e sede debruçado no balcão de um botequinho de esquina. Enquanto isso, a atendente, aparentemente muito descontraída, conversava com a colega de trabalho. Eu continuava a observar os arredores como costumeiramente.
De repente, uma cena me fez parar e lamentar. Meus olhos correram ao encontro dos de minha mãe e a entoação daquele "creeedo!" veio completar nossa sensação.
O bate-papo das mocinhas devia estar bem agradável, creio eu, pois a que estava de frente para o rapaz - debruçada no balcão do lado de dentro -, parecia bem solta e alegre. O cliente tinha o pensamento a milhares de milhas dali - Ufa!. Possivelmente as belas falavam de uma grande festa. Foi a conclusão a que cheguei depois de ver a balconista girando calmamente o indicador direito na narina do mesmo lado, como se fizesse a melhor "limpeza de salão" de sua vida. Fiquei olhando para aquilo sem saber se ria ou chorava, intimamente inconformada. Ao terminar, ela ainda friccionou delicadamente o polegar e o indicador em movimentos circulares, certamente produzindo um objeto esférico de caca recém-extraída, acomodando-o, em seguida, na manga esquerda de sua camiseta. Pavorosa visão! Sorte é que o rapaz não teve a oportunidade de apreciar tão inesquecível espetáculo. Mas eu tive, nós tivemos. Aparei o queixo com uma das mãos e exclamei: nossa, mãe, que vergonha! E ela: você viu? Na frente do cliente!!!
Enfim, pouco menos inconformada, lembrei-me aqui de uma outra situação em que quase matei alguém de vergonha.
Eu nunca tinha viajado de navio. Antes de partir, uma série de documentos foram lidos, preenchidos e inúmeras orientações foram acatadas. Uma delas - e que me preocupava bastante - era a de que roupas deveriam ser levadas em bagagem de mão, caso a mala principal demorasse pra chegar à cabine ou se perdesse pelo trajeto. Assim procedi, temente. Orientei também meu namorado - pessoa discretamente desligada.
Meu pensamento: como vou ficar todos os dias a bordo com a mesma calcinha? Ai, meu Deus! Como participar das festas chiques de tênis e calça jeans de dias? Desesperador.
Para não ser vítima dessa situação, comprei a mala na cor vermelha e nela amarrei um lencinho como marquinha pessoal.
O dia da viagem chegou, a empolgação aumentou e eu rezei pra minha mala não fugir de mim, já que nos despedimos no Porto.
Com 5 mil pessoas a bordo, como eu seria a contemplada com tal infortúnio? As outras 4.999 bagagens poderiam muito bem ser extraviadas no lugar da minha. Santo egoísmo!
Enfim, já dentro daquela imensidão sobre as águas, fomos conhecer nossa cabine - 2367. Ao abrirmos a porta, avistamos 2 malas... Pretas. Faltou-me a esperança: não, meu Deus, justo comigo?! Meu namorado já previa minha aflição. Sem muito pensar, dei uma olhada nas cabines vizinhas e vi as portas entreabertas - corredor vazio. Imediatamente sai batendo a mão em todas, abrindo uma a uma, procurando minha mala vermelha. Foi então, que ao abrir a 2361, dei de cara com um mocinho "luggage service" ao qual eu falei: essa bagagem é minha. Ele era chinês, japonês, coreano, sei lá, não me atentei a isso, e ele não entendeu o português. Então continuei: this is my luggage; my cabin is two three six seven. Prontamente ele me atendeu, constatou na etiqueta a verdade por mim buscada e se desculpou pela troca. A que estava em nossa cabine era a da 2361. Foi só uma troca mesmo. Situação nem relevante para os excelentes serviços a que tivemos acesso ali.
Kennedy diz até hoje que gostaria de ter gravado minha expressão diante deste inusitado início de viagem. Quase matei o menino de vergonha, que, mesmo vermelho como meu objeto de desejo, me acompanhou na corrida pela esperada reconquista.
Nossa vida é continuamente repleta de situações corriqueiras que, quando apreciadas a partir da arte, figuram as mais divertidas histórias.
Por exemplo: nada mal pedir uma coca-cola para o garçom em um restaurante, certo? Certo!
E quando em um almoço de três amigas de república com seus companheiros, dentre eles o casal da viagem citado na cena anterior, uma das meninas se dirige ao garçom e, séria, requisita: por favor, uma coca gelada sem gelo! ?
Nada anormal. Mas, pensando bem, qual seria a temperatura da bebida? Seria esta uma modalidade nova para se pedir refrigerante? O marido dela ficou emcabulado e com vergonha alheia, sentimento este espalhado para os outros quatro que estavam à mesa, além do garçom que ria, afinal, não precisaria explicar tanto. O moço jamais traria uma coca quente naquele calorão de 32 graus. Terminando de anotar o restante dos pedidos, saiu ainda achando graça. Certamente fora ali vítima de muitos episódios que lhe causaram vergonha alheia.
A cena vivida foi simples, contudo, vista como um ensejo de transformar em crônica a simplicidade daquele minuto.
Nossa existência é assim, abarrotada desses valiosos curtos espaços de tempo que carregam nosso ser como somos, seja em qual for a situação.