A criança interior
Na parede de minha sala tem o quadro de uma criança sorridente, um garoto, usando uma ridícula camiseta xadrez, suja e rasgada embaixo do braço. O cabelo está todo despenteado e ele está até meio banguela, "porteirinha", melhor dizendo. Mesmo assim, ele sorri. Todo dia, olho de soslaio o retrato daquela criança. Evito fixar meu olhar naquele retrato, pois o desleixo da imagem do garoto não me apráz. Às vezes, até esqueço que ele existe. Mas sei que ele está lá. O garoto não se importa com a poeira, não se importa com as teias de aranha que, vez por outra, surgem. Ele continua sorrindo, apesar de meu desprezo. Dia desses, encarei o retrato do guri, que há tempos, se foi. Ele sorria, claro, mesmo contemplando o meu semblante preocupado com problemas, decepções, anseios, projetos etc. Mesmo desleixado como estava, o garoto ria e era feliz. Ao contrário de mim, todo alinhado, com gel no cabelo, o sapato lustrado. Ele era feliz porque se lembrava de rir, de brincar, de festejar cada uma de suas conquistas. E elas não eram muitas, nem tão ambiciosas. Ele ficava feliz por um doce, por ver um desenho na TV, por andar de carroça, por catar pitanga no mato, por jogar bola...
Dizem que não importa o tempo que se viva, todos preservamos a nossa criança interior. Porém, muitas vezes, escondemos ela em um porão, nos recônditos de nossa mente. Foi o que eu fiz com a criança que fui Ingrato, aprisionei-a. O fato de evitar olhar para o quadro era uma forma de não querer me lembrar que, até bem pouco tempo atrás, ainda preservava parte da inocência daquele guri sorridente e banguela. Que era capaz de me contentar com pouco, de celebrar minhas conquistas, de me emocionar. E assim, uma criança de 05 anos me deu uma grande lição. Não importa o exterior, podemos ser felizes, se estivermos em paz com o que somos. E não importa quantos anos se tenha, não é desculpa para perder a inocência e aprisionar a nossa criança interior.