'Baianada Paulista II'

Depois da saga dos valentes nordestinos (baianos ou não) em 'Baianada Paulista', volto à carga com uma nova aventura, desta feita com quatro personagens que conheci na minha já distante juventude, vividas na velha e querida Rua Santo Antonio, no bairro do Bixiga. Esta narrativa envolverá também outros participantes, a exemplo de 'seu' Tito (‘Seu Tito’: um grande bixiguense), familiares e amigos nossos, todos 'bixiguenses'. Estamos na década de sessenta e a ditadura militar impõe as 'novas regras' a todos os cidadãos brasileiros. Mandatos políticos são cassados e um séquito de exilados de todas as esferas culturais buscam, em outros países, novos ares e a calmaria necessária para refletirem sobre a situação da pátria mãe.

No Bixiga, a vida não difere muito dos acontecimentos às voltas com a situação nacional e todos buscam suas alternativas econômicas para a necessária manutenção econômica e familiar, já que a velada recessão imposta pelo regime militar havia atingido vários setores da indústria e do comércio, causando demissões. O seu Tito, assim como o meu pai e outros trabalhadores, foram surpreendidos com a 'nova ordem econômica' imposta pelo regime militar e, dispondo de algum recurso financeiro, adquiriu um pequeno terreno na Rua Santo Antonio, onde originalmente havia uma 'maloca', e o transformou em um estacionamento para automóveis. Foi um verdadeiro 'achado', pois muitas das casas e prédios de apartamentos de nossa rua não dispunham de garagem para aqueles que tivessem um automóvel. Foi a fome com a vontade de comer, e o 'pirão' estava servido. Ou seja, seu Tito estava coma a faca e o queijo nas mãos.

Estacionamento inaugurado com o sugestivo nome do mais novo membro da família Maita, foi batizado 'Estacionamento Marcelo' e já contava com uma freguesia fixa de mensalistas e alguns ocasionais. O movimento crescia sempre nos dias e noites de sextas-feiras e sábados, por força das cantinas e dos bares das redondezas. A necessidade de um gerente para administrar o novo empreendimento de seu Tito 'bateu' de frente com o Zezito, um baiano da cidade de Tucano, saído não sei de onde e que, adquirida a confiança e acertados os devidos pormenores, passou a ser o responsável pela guarda e manutenção do estacionamento.

Seu Tito era assim. Quem dele necessitasse e ele podendo atender, tudo certo! Zezito era um tipo característico de baiano que não deixava dúvidas quanto a sua origem. Bem falador (falava mais do que papagaio) e gostava das coisas corretas. Muito responsável e cioso, cuidava do estacionamento como se dele fosse e, com o decorrer do tempo, conquistou a simpatia e confiança de seu Tito, assim como a de todos os fregueses do pequeno comércio.

Eu, de pronto, fiz amizade com aquela figura exótica que trazia estampada a ‘baianidade’ contemporânea e sertaneja e passamos a travar nossos entendimentos. Contudo, o meu novo amigo ainda se sentia um pouco destacado do convívio 'bixiguense' e as saudades da 'boa terra' por vezes o prostrava em visível tristeza. Foi quando por lá apareceram três 'conterrâneos' seus, o Braulio, o 'Preto' e outro que não me recordo de seu nome, mas o apelidei de 'Dengoso', pelo modo descansado e relaxado no seu falar.

Foi uma só alegria esse inusitado encontro que esbarrou num pequeno problema. Todos estavam sem lugar para ficar, situação essa que, depois de falar com o seu Tito, todos se 'arranjaram' em um cômodo improvisado nos fundos do estacionamento. Era uma espécie de 'mezanino' onde o Dengoso armava sua rede de dormir e os demais, em camas construídas rusticamente pelas mãos hábeis de Preto, que se revelou um bom marceneiro. Quanto ao Braulio, este tinha emprego e era o mais namorador da turma. Passado o tempo, a vida fluía tranqüila, até quando o Zezito me revelou uma sua vontade que era a de aprender a dirigir automóvel. Pensei um pouco e respondi-lhe: - E porque não?

Seu aprendizado deu-se até que rapidamente, pois a área do estacionamento era perfeita para o exercício de pequenas manobras e assim o Zezito, ao cabo de alguns dias de 'lição prática', aprendeu a dirigir (ou pelo menos manobrar). Em uma das sextas-feiras de movimento no estacionamento, à noite, um ocasional freguês adentra o estacionamento para guardar o seu carro. Não se tratava de pessoa comum. Era o comediante Ronald de Golias e sua família, que viera a uma das cantinas e aportou com seu Galaxie LTD verde-cana e que foi por mim recepcionado.

O Zezito não quis 'manobrar' o enorme veículo por achá-lo muito grande e temeu um acidente ao posicioná-lo na vaga, transferindo para mim a 'responsabilidade'. Feita a ação, surge na entrada do estacionamento um outro veículo. Desta feita, não era ninguém de nosso conhecimento, mas o carro é que foi um drástico problema para o Zezito.

- Nelson... - gritou ele.

- O que foi, Zezito? - respondi.

- Venha cá, ver essa 'peste' deste carro que não tem o pedal do 'desembréio'.

- ...???...

- Corre aqui e veja você mesmo...

Corri em direção do Zezito que vociferava:

- Como é que o 'cabra' passa as marchas desse ‘infeliz’ se não tem o pedal do 'desembréio', 'oxente'...tá com a 'molesta'...

E depois de vociferar, blasfemar e se 'retar' com a falta do pedal do 'desembréio' disse-lhe:

- Zezito, não se 'avéxe' não, více! Esse tipo de carro tem o câmbio automático. Só não lhe falei antes porque é um pouco difícil de um deles aparecer por aqui...

- Mas, apareceu, né...

- Pois é. Apareceu. Mas, fique tranquilo. Vou lhe mostrar como se dirige um desses.

Passado o 'retamento' de Zezito, coloquei-o ao meu lado no tal veículo sem o pedal do 'desembréio' (era uma Mercedes 280) e passei a mostrar-lhe como conduzi-lo. Zezito não se convenceu e achou por bem estabelecer um acordo comigo. Quando por lá chegassem carros 'normais', ele mesmo faria as manobras e os estacionaria e, caso fossem aquelas 'monstruosidades' do tipo do carro do Golias ou 'capenga' de pedal, estes seriam de minha total e exclusiva responsabilidade.

Não consegui segurar a risada e questionei:

- E, se por um acaso, eu não estiver aqui, como você fará?

- Daí, eu chamo o seu Tito.

- E, se ele não estiver?

- Então, eu chamo o Amadinho.

- E se o Amadinho não estiver também?

- Olhe, Nelson. Você já tá procurando é confusão. Então eu peço para o dono mesmo estacionar e se ele não quiser, que largue o 'cabrunco' dele no meio da rua e se pique...

- Mas, não é assim não, Zezito.

- Pois, que se não for assim, vai ser.

- Você precisa ter mais paciência. A coisa não é tão difícil assim e, com jeito e treino, amanhã você poderá estar dirigindo até uma jamanta...

- É, mas por enquanto, vamos ficar naquilo que a gente se acertou.

Algumas vezes mais a Mercedes automática foi nossa 'cliente', bem como outros carros, igualmente automáticos ou hidramáticos, para o desespero do Zezito. Não sei o que se sucedeu depois de certo tempo com o Zezito e o estacionamento do seu Tito, pois dali a alguns meses, minha família se mudaria de casa e de bairro, indo morar no distante, no bairro do Tremembé, visto que o proprietário da casa em que morávamos não quis renovar o contrato de aluguel e já tinha proposta para a sua venda, o que foi feito assim que nos mudamos. Das vezes que passei em frente ao estacionamento, pude ver o Zezito às voltas com os carros a serem estacionados e imaginava como estaria ele se saindo com os carros sem o pedal do 'desembréio'.

De tudo e de todos, ficaram as lembranças e as saudades, mas do estacionamento, ainda consigo visualizá-lo através do 'Google Earth', mesmo que em estática imagem. Quanto ao Braulio, Preto e o Dengoso, estes também nortearam seus caminhos e devem estar em algum lugar por aí e, com certeza, guardam as mesmas saudades.