O tamanho do relógio
De sol, de água, mecânicos, automáticos, digitais e até atômicos, os relógios estão presentes na vida humana desde a necessária curiosidade acerca do dia e da noite, das estações (e o interesse maior prévio no plantio e colheita) etc.
Uma contagem inicial, entre o dia e a noite, foi sendo progressivamente dividida, até os 'fantasmas' de segundos, conformando uma visão de velocidade crescente, chegando-se próximo do 'esmagamento' da realidade.
Bem definido por Jesse Matz (How to Do Time with Texts - Oxford Journals - September 15, 2009), a noção do tempo (algo natural) foi sendo transformada em condicionamento para atender, continuamente, aos interesses de dominação política. Se em tempos remotos 'havia tempo para tudo', desde a modernidade, somos pervertidos à uma sensação de que 'não há mais tempo pra nada'. Embora, durante muitos séculos antes, tenhamos sido controlados pelos 'badalos dos sinos', somente a partir da modernidade começamos a chegar às 'minúcias do tempo' dividido. E passamos a ser condenados 'por perder tempo', dado que 'tempo é dinheiro'. "Ganhe dinheiro, não perdendo tempo" era um 'slogan' publicitário da rádio brasileira nos anos 60-70 do século passado. "Disciplina no trabalho" requer "métodos disciplinares", conforme EP Thompson, "daí a importância dos relógios". A vida, foi sendo rebaixada à 'escravidão do relógio', naquilo que parecia progresso, mas realizou-se como retrocesso, sendo o relógio um meio 'rentável' de viver. No entanto, o paradoxo é que não se contou mais os 'passos da vida', porém os 'passos para a morte'.
Cita Matz (Jesse Matz - Yale - é professor de Literatura do Século XX e de Teoria Narrativa), no aludido artigo, as tentativas iconoclastas ao relógio e os alertas de que contar a vida em segundos é como contar 'batidas sobre a tampa do caixão' e interpreta Dali ("relógios derretidos") denunciando que 'a disciplina do relógio' destrói o humano, naquilo que lhe é mais caro e natural. A vida, como realidade, vem sendo destinada à estatística, a cada instante, numa luta de demonstração entre o 'homogêneo' e o 'heterogêneo'.
As consequências psico-sociais são evidentes, como apontam tantos estudos científicos. Aceitando-se o 'tempo pra nada', se diminui a 'importância' da vida como um todo, elevando-se a 'desimportância' de 'somar momentos', para a redução divisional até o fragmentário. A sensação de periodicidade na possibilidade do fruir fica tão diminuída, num engodar dos sentimentos, que o ser humano imagina ser o mais natural 'sofrer mesmo' que felicitar-se, abdicando de processos maiores de prazer.
Isso parece vir ocorrendo na apreciação das artes. Um filme ou peça teatral, não pode mais ter duração superior a 90 minutos, pois que 'dá coceira' na platéia, por exemplo. Mas aqui, especificamente, a experiência literária pode significar mais. Outro dia, saindo da Livraria Cultura, em São Paulo, num sábado à tarde (ainda bem que estava movimentada) eu carregava, satisfeito, um catatau de 1457 páginas (Louis Fréderic, O Japão - dicionário e civilização, Ed.Globo) e me dirigia à Estação do Metrô, felicíssimo de folhear aleatoriamente as páginas, dando atenção a uma ou outra, de vez em quando, caminhando, até que percebi o que me pareciam 'olhares assustadores' divisando o tamanho do meu livro. Poderia ter sido apenas impressão ligeira, dessas que construímos num instante fortuito, qual uma paranóia, mas na viagem, quando levantava a cabeça para observar em que Estação chegava o trem, outras em torno procuravam disfarçar o 'espanto' pelo tamanho do meu livro. Mesmo assim, buscando prudência, quis argumentar-me estar com o 'ego inflado' pelo espetáculo do livro que havia adquirido. De fato, não é 'para me gabar', mas que sentir propriedade de ter um livro deste naipe é mesmo gratificante, isso é! Cheguei à Estação Sé, onde desembarquei e caminhei em passos curtos (ia admirando a cada instante páginas e mais páginas - só admirando mesmo, numa leitura inconsequente). Poderia 'tomar um táxi' e assentar-me confortavelmente para ler até rumar à casa de meu sogro, mas considerei que chegaria mais rápido, tendo que guardá-lo em minha mala quando lá chegasse (me desfazer, mesmo que temporariamente, daquele prazer, que poderia ter maior continuidade, não considerei opcional). Decidi ir até um ponto de ônibus que vai até próximo à casa de destino. Lá chegando, novamente, percebi os 'olhares assustados' com a visão que tinham daquilo em minhas mãos e concluí que, o tamanho do meu livro incomodava mesmo. Quem conhece, nem que seja um pouco, a cidade de São Paulo, sabe que nos finais-de-semana, o serviço de ônibus tem intervalos muito grandes, mas que importava a fila, tendo o meu 'baita' livro à disposição? Depois, embarquei abancando-me, com um sorriso inconteste, folheando e folheando, lentamente; indo e voltando, num processo de sentir felicidade, sem pressa, saboreando cada palavra, degustando cada penetração na cultura japonesa. Quando aproximou-se o ponto de descida, fechei, mesmo a contragosto, o meu livro, enfiando-o novamente, inteiro, na sacola que portava; ficando a certeza de que desfrutaria dali em diante, uma leitura atemporal, sem aqueles 'perturbados olhares' ao meu redor.
De sol, de água, mecânicos, automáticos, digitais e até atômicos, os relógios estão presentes na vida humana desde a necessária curiosidade acerca do dia e da noite, das estações (e o interesse maior prévio no plantio e colheita) etc.
Uma contagem inicial, entre o dia e a noite, foi sendo progressivamente dividida, até os 'fantasmas' de segundos, conformando uma visão de velocidade crescente, chegando-se próximo do 'esmagamento' da realidade.
Bem definido por Jesse Matz (How to Do Time with Texts - Oxford Journals - September 15, 2009), a noção do tempo (algo natural) foi sendo transformada em condicionamento para atender, continuamente, aos interesses de dominação política. Se em tempos remotos 'havia tempo para tudo', desde a modernidade, somos pervertidos à uma sensação de que 'não há mais tempo pra nada'. Embora, durante muitos séculos antes, tenhamos sido controlados pelos 'badalos dos sinos', somente a partir da modernidade começamos a chegar às 'minúcias do tempo' dividido. E passamos a ser condenados 'por perder tempo', dado que 'tempo é dinheiro'. "Ganhe dinheiro, não perdendo tempo" era um 'slogan' publicitário da rádio brasileira nos anos 60-70 do século passado. "Disciplina no trabalho" requer "métodos disciplinares", conforme EP Thompson, "daí a importância dos relógios". A vida, foi sendo rebaixada à 'escravidão do relógio', naquilo que parecia progresso, mas realizou-se como retrocesso, sendo o relógio um meio 'rentável' de viver. No entanto, o paradoxo é que não se contou mais os 'passos da vida', porém os 'passos para a morte'.
Cita Matz (Jesse Matz - Yale - é professor de Literatura do Século XX e de Teoria Narrativa), no aludido artigo, as tentativas iconoclastas ao relógio e os alertas de que contar a vida em segundos é como contar 'batidas sobre a tampa do caixão' e interpreta Dali ("relógios derretidos") denunciando que 'a disciplina do relógio' destrói o humano, naquilo que lhe é mais caro e natural. A vida, como realidade, vem sendo destinada à estatística, a cada instante, numa luta de demonstração entre o 'homogêneo' e o 'heterogêneo'.
As consequências psico-sociais são evidentes, como apontam tantos estudos científicos. Aceitando-se o 'tempo pra nada', se diminui a 'importância' da vida como um todo, elevando-se a 'desimportância' de 'somar momentos', para a redução divisional até o fragmentário. A sensação de periodicidade na possibilidade do fruir fica tão diminuída, num engodar dos sentimentos, que o ser humano imagina ser o mais natural 'sofrer mesmo' que felicitar-se, abdicando de processos maiores de prazer.
Isso parece vir ocorrendo na apreciação das artes. Um filme ou peça teatral, não pode mais ter duração superior a 90 minutos, pois que 'dá coceira' na platéia, por exemplo. Mas aqui, especificamente, a experiência literária pode significar mais. Outro dia, saindo da Livraria Cultura, em São Paulo, num sábado à tarde (ainda bem que estava movimentada) eu carregava, satisfeito, um catatau de 1457 páginas (Louis Fréderic, O Japão - dicionário e civilização, Ed.Globo) e me dirigia à Estação do Metrô, felicíssimo de folhear aleatoriamente as páginas, dando atenção a uma ou outra, de vez em quando, caminhando, até que percebi o que me pareciam 'olhares assustadores' divisando o tamanho do meu livro. Poderia ter sido apenas impressão ligeira, dessas que construímos num instante fortuito, qual uma paranóia, mas na viagem, quando levantava a cabeça para observar em que Estação chegava o trem, outras em torno procuravam disfarçar o 'espanto' pelo tamanho do meu livro. Mesmo assim, buscando prudência, quis argumentar-me estar com o 'ego inflado' pelo espetáculo do livro que havia adquirido. De fato, não é 'para me gabar', mas que sentir propriedade de ter um livro deste naipe é mesmo gratificante, isso é! Cheguei à Estação Sé, onde desembarquei e caminhei em passos curtos (ia admirando a cada instante páginas e mais páginas - só admirando mesmo, numa leitura inconsequente). Poderia 'tomar um táxi' e assentar-me confortavelmente para ler até rumar à casa de meu sogro, mas considerei que chegaria mais rápido, tendo que guardá-lo em minha mala quando lá chegasse (me desfazer, mesmo que temporariamente, daquele prazer, que poderia ter maior continuidade, não considerei opcional). Decidi ir até um ponto de ônibus que vai até próximo à casa de destino. Lá chegando, novamente, percebi os 'olhares assustados' com a visão que tinham daquilo em minhas mãos e concluí que, o tamanho do meu livro incomodava mesmo. Quem conhece, nem que seja um pouco, a cidade de São Paulo, sabe que nos finais-de-semana, o serviço de ônibus tem intervalos muito grandes, mas que importava a fila, tendo o meu 'baita' livro à disposição? Depois, embarquei abancando-me, com um sorriso inconteste, folheando e folheando, lentamente; indo e voltando, num processo de sentir felicidade, sem pressa, saboreando cada palavra, degustando cada penetração na cultura japonesa. Quando aproximou-se o ponto de descida, fechei, mesmo a contragosto, o meu livro, enfiando-o novamente, inteiro, na sacola que portava; ficando a certeza de que desfrutaria dali em diante, uma leitura atemporal, sem aqueles 'perturbados olhares' ao meu redor.