Vai um picolé?

A minha infância teve um sabor autêntico. Éramos aquele tipo de criatura impetuosa, despreocupada e descalça. Éramos o que os adultos chamavam de “as crianças”.
Pique-esconde, que a gente chamava de pique-um-dois-três e o imenso prazer em salvar todos. Amarelinha bem desenhada e jogada com casca de banana, melhor que pedrinha, porque não rolava. Mãe-da-rua, sem perigo, de um meio-fio ao outro. Nossa! Quantos hífens havia nas nossas brincadeiras! Acho que, se eu estivesse escrevendo sobre brincadeiras atuais não poderia usar todos eles, por causa das novas regras na língua. Em compensação, se fosse falar das brincadeiras de hoje, usaria muitos “wyk”, essas letras que até outro dia não faziam parte do nosso alfabeto. Eram vinte e três letras para vinte e três mil horas de rua, de rostos suados, de gritos e tombos espetaculares.
Bicicleta e carrinho de rolimã, no meio da rua, sem cinto de segurança. Muitos esparadrapos por cima do mercúrio cromo. Hoje está proibido, dá alergia. Aliás, meu filho teve uma tremenda alergia a mercúrio cromo! Coitado. Mas naquele tempo todo da minha infância não tive nenhuma notícia de algo parecido. Vai ver que muitos morreram e a gente nem soube. Acharam que foi impaludismo(hoje não se morre mais de impaludismo), caxumba e foi alergia ao remédio do joelho ralado. Quem sabe. Considerando que a gente andava em pé nos bancos de trás dos automóveis, sem cadeirinhas nem cintos, tudo é possível. Aliás, no caso da minha família, seria uma aventura arranjar uma carro onde se pudesse acomodar tantas crianças em cadeirinhas super sofisticadas como as de hoje. E lá
vamos nós, para o sítio do vovô! Todos na Vemaguete! Conta a lenda que uma vez uma irmã mais nova da minha mãe caiu do carro, na volta do sítio. Era possível de acontecer. Mas o vovô ia tão devagar que a criança deve ter chegado em casa antes da família toda, correndo por fora do carro. O sítio em questão era em Jacarepaguá. Vejam bem, tudo isso é do tempo em que Jacarepaguá era roça. Com a vaca douradinha, a fila para abrir o coco e a cana cortada na hora pra chupar e assoviar. Como o vovô teve muitos filhos, todos com a mesma vovó, nós, sobrinhos, fomos quase crianças junto com os tios mais novos. Daí as memórias contemporâneas.
O sorvete Kibon vinha embrulhado no papel enrolado, sem lacre. Pura fruta ou chicabon! Lembro do de manga, que só faziam no verão, que era quando as mangas existiam. Hoje temos manga o ano inteiro, apesar de não terem nenhum perfume e quase nenhum gosto. Lá em casa elas perfumavam toda a cozinha, vindas da casa da vovó. Eram as carlotinhas, as espadas (cheias de fiapos), as mangas-rosa (muito raras). Deliciosas. Hoje elas têm uns nomes mais esquisitos.
E as pausas das brincadeiras eram para se tomar um copo d’água e comer uma banana.
Colégio era de março a junho e pausava um mês. Depois vinha o segundo semestre, de agosto a novembro. Tínhamos férias e íamos à praia, à rua, à casa dos amigos. Tínhamos a família jantando na mesa da sala, e tínhamos sono cedo, porque a noite era mais coisa de adultos. Ficar acordado até meia noite era no Natal e no Ano Novo. Os dias eram mais interessantes para nós.
A televisão era nos dias de chuva, na hora de ver os desenhos animados. Perda de tempo, ficar parado na frente daquela coisa em preto e branco, com pessoas falando.
Realmente não sei como eu viveria a infância de hoje. Com certeza a um a hora dessas eu estaria no play, brincando com minha Hello Kitti (aquela gata horrorosa cabeçuda e sem boca) e falando de namorado, dançando que nem aquela cantora esquisita tirando milhares de fotos de coisa nenhuma para colocar no meu Orkut.
Teca Barcellos
Enviado por Teca Barcellos em 25/08/2010
Código do texto: T2458301
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