Culture Club

Essa nossa tendência ao otimismo sem graça. Esta coisa de termos sempre de buscar consolo – por mais intangível que o consolo possa parecer.

Minha mãe espera encontrar com seus entes queridos no paraíso. O negócio é que nem a Bíblia, nem o espiritismo deixam claro esta questão. Segundo a Bíblia, ela só terá chance de encontrar algum parente se este pertencer ao grupo dos salvos. Segundo o espiritismo difundido por Allan Kardek, após a morte, nosso espírito não tarda a voltar para o plano material; logo, fica restrita a possibilidade de um encontro com aqueles que amamos no plano espiritual, pois nossos parentes não ficam nos esperando: depois de estarem um tempo no plano espiritual aprendendo sobre quem de fato são (e descobrem que não são quem pensavam ser), os espíritos voltam à Terra e reencarnam. Portanto, isso de encontrar com os parentes e amigos no céu é mais uma teoria folclórica para consolo dos corações partidos pela separação do que algo sacramentado; não é fundado nem mesmo nas nossas religiões. Mas se minha mãe, tão amada, perde esta esperança, ela perde a si própria.

O dito acima faz-me pensar sobre como nossa cultura ocidental sobrepõe-se à própria religião. A cultura é tudo o que importa. Ela é a ré. Ela é a acusadora. Ela é a culpada. A culpa não é do molestador, não é da mãe, nem do pai, do avô, do bisavô, de Adão, de Satanás ou de Deus. Não há culpados além da cultura. Somos filhos da cultura. Somos filhos da puta da cultura. Herdamos a culpa que não é nossa, e disso não podemos fugir, pois nada mais além existe além dela – ela também é mãe do calendário (só não é mãe do tempo).

No banquete do tempo, eu sou o prato principal. Estou te convidando para sermos comidos juntos. Dezembro está chegando. E dezembro é meu referencial de passagem de tempo: meu aniversário é em dezembro. E o natal me entorpece de forma estranha e intensa, sendo que, neste momento, quero você comigo. Não como minha dona ou minha propriedade ou com minha muleta. Mas como uma guardiã.

Poxa! estou cercado de mulheres. Não poderia eu viver sem elas. Minha pequena flor morena é mais que uma musa pra mim: é um espelho meu E (espelhos, sim; estes são todos sagrados. Espelhos são sagrados e mentirosos). Tenho me visto em seu rosto vivo. E ao ver-me nela, volto a ter contato também com a mulher que também existe em mim. E isso não é ruim nem espantoso, pois sem essa mulher eu não me possuiria tal como hoje. Minha querida mãe, minhas professoras, minhas primas, minha irmã, minhas namoradas, as grandes atrizes do cinema, minha maravilhosa companheira, e, por fim, minha pequena fraçãozinha morena me fazem o que sou, e fazem com que eu me construa, como tenho me construído interminavelmente.

Busco ser frugal. As vias são tortas, eu sei. Nestes anos (trinta e três – quase trinta e quatro) tenho sido alvo de paixões doridas e momentos de equilibrada reflexão e controle, intercaladamente. O sol de dezembro está chegando. E dezembro é isso: paixões de céu azul e introspecções de tardes cinzas. Tive muitos dezembros sem ver o mar. Isto me entristece, pois o mar é algo encantado pra mim; o mar é o meu elo místico – até mesmo eu, um ateu, não posso deixar de imergir-me em misticismo ( ou mesmo emergir-me do misticismo; já que, no mundo encantado dos sonho já nascemos submersos) – ; minha junção com o mundo intuitivo. É como se as belas paisagens da natureza fossem um papel de parede na "matrix"; e o mar de dezembro uma profunda inserção nesta.

Apaixonar-me em dezembro é praxe. É sempre. Até por um cão vira-lata. Até por um filme – que coisa de cinéfilo retardado essa de apaixonar-se por um filme. Mas acontece de verdade. Como uma película com imagens pode causar dor e prazer tão reincidentes na mente de uma pessoa, a ponto de equivaler-se a uma mulher? Pois é; ocorre comigo. E dezembro propicia coisa assim.

Mas o calor do verão destes trópicos fabrica amor? E a cada terço final de dezembro eu morro um pouco mais. Embora meu ser sapiens me diga que datas são nada, que não existe aniversário, não existe natal, calendário é mentira... quando penso que estou liberto desta palhaçada, a fuga do niilismo que desprotege leva-me até a mãe cultura; e assim, apego-me a estes artifícios – mas sem muito apego e com total irrelevância.

Papais-Noel, caixas coloridas com fumaça de ópio, banquetes de Ana Maria Braga: a mentira é mais mentirosa em dezembro, a ilusão mais alucinógena, a comida mais cheirosa, a bosta mais fedida – e, a despeito de tudo, mais próximos da lama parecemos estar. A mente viaja. E viaja tanto que parecemos estar em slow-motion quando contrapomos nossos corpos com a realidade ultra-veloz à nossa volta.

Depois vem janeiro, com aquelas férias que só os ricos podem ter. Depois vem fevereiro, a vez dos pobres (só aparentemente; não nos enganemos). No fundo; no fundo mesmo... carnaval é sexo – aliás, como tudo o que é humano – ; e sexo, como sabemos, é coisa muito cara.

Entretanto, abandonar esse clube, ou, simplesmente, deixar de pagar as mensalidades, é renunciar à vida. Tudo pelo social: ou ele te mata.

Luciano Fortunato
Enviado por Luciano Fortunato em 21/09/2006
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