Oração subordinada ao mundo
Rezo por um pouco de paz no mundo a minha oração calada que conta pouco, quase nada. Rezo porque existe poesia na oração que é voz interior nutrida de desejo sobre tanta tragédia concreta. Rezo pela saúde de todos e da minha.
Rezo para que em meu bar solitário e noturno de interior urbano nasça uma banda, e que ela toque “Aurora, se fosse você sincera...” enquanto eu fumo e rezo. Fumo e bebo e canto num raro momento implacável de liberdade individual. Rezo para que alguém sábio cantarole um samba antigo, sincopado com elegância divina. Exposto ao estágio mais simples e poético de oração que consiste numa simples batucada amiga.
Rezo pela justiça das crianças sem bolo no dia do próprio aniversário. Rezo pela alegria básica da cesta básica sem fins políticos. Rezo noite e dia imerso em minha ficção inútil, mas tranquilizante, egoísta, posto que exuberante. Rezo ao sol banhado de lirismo sobre o corpo fantasticamente hedonista. Corpo de praia que reza para que me esqueçam quando sobrar apenas os procedimentos de praxe. Oração para viver longe das sutilezas que são vantagens ao lucro perdulário dos atendimentos de praxe. Rezo para que a lua subtraída do romantismo à ciência não diminua como diminuirão as pupilas antes que desapareça.
Rezo para que a sujeira não estrague cada vez mais o mundo. Rezo contra o êxodo da ternura nesse solo seco, árduo onde cada esfinge esplende uma imbecil grandeza. Desfio minha oratória inútil no mundo implacável. Para beber vertigem mágica como quem possui milhões de caminhos, mas nenhum rumo.
Rezo para que se respeite à cláusula pétrea da ordem amar. Amar com tenuidade. Humildemente perdoado como quem sai de um banho, limpo e retificado. Por fim rezo para que o plano de desenvolvimento não seja furtado, deixando de existir como objeto permanente. Bem como rezo para que o botão do mouse funcione enquanto são cobrados com perfeição os minutos de utilização, assim de um modo geral a tecnologia.
Rezo para que a vida não se transforme num estatuto horrível de unidade mecânica, indivisível, a ser decorado, explorado e seguido. Para que não seja necessário orações bem mais do que fábulas. Para distração do câncer, do medo, da dor, da angústia amarga que é assistir a tua face esplêndida sofrer entre a ternura dos gestos e o dilema eterno.
Rezo sem Deus a noção exata da sua importância.
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