Esses gringos...

                                   (Relembranças)

     Era italiano o primeiro gringo que eu conheci. Alto e elegante, usava suspensórios e se chamava Geovanni.
     Foi na década de 1940, no sertão do Ceará. Eu tinha pouco mais de seis anos de idade.
     Casado com uma moça de família apatacada de minha cidade, ele vivia em permanente evidência. 
     Mostrava-se, porém, um sujeito caladão; de poucas palavras; monossilábico. 
     Seu amigos, entretanto, garantiam que ele, na intimidade, era "bom de papo".
     Confirmando, aliás, o que se diz dos italianos, ou seja, que eles são palavrosos, tagarelas. 
     Quem encontrasse o Geovanni nas acanhadas ruas da cidade, não hesitaria em dizer:não, ele não é cearense.
     Isso mesmo: o Geovanni não tinha um só dos traços físicos apontados por Rachel de Queiroz, pintando seus conterrâneos. 
     Para a autora de O Quinze,
 cearense "é pequenino (batoré), cara de índio, entusiasmado, cabeça-chata".
     Nunca soube em que região da Itália ele nascera. Na Toscana? Na Úmbria, Na Calábria? Também nunca perguntei.
     A bela Itália,  naquele tempo, me interessava muito pouco. Para mim ela era, apenas, a terra do papa.
     Por isso, quando olhava pro Geovanni, me lembrava, imediatamente, do narigudo Pio XII, o papa da época, que conheci, através dos postais vindos de Roma para o meu vigário.
     Vaidoso, ele os mostrava aos paroquianos que lhe eram mais próximos.
     Este, portanto, o gringo Geovanni, que perdi de vista quando fui morar em outras terras.
     Seu estranho biótipo ficou-me nas lembranças mais distante que tenho da minha infância, vivida sob o céu azulado do sertão do Ceará. 
     Mais gringos fui encontrando pela vida afora. 
     No seminário, por exemplo, entre 1947 e 1952, convivi com dezenas de frades franciscanos alemães, excepcionais professores. 
     No final de 1952, cheguei em Fortaleza.
     E mais gringos, a maioria comerciantes árabes, ou deles descendentes, na labuta diária, me foram sendo apresentados. 
     Desses gringos me lembrei quando, na minha recente visita a Fortaleza, passei de táxi nas proximidades do Quartel General do Exército, a poucas quadras do Mercado Central, vindo da praia do Meireles, para o centro da cidade. 
     (E aqui um parêntese para dizer que fazia mais de cinco anos que não ia à capital alencarina. Já morria de saudade do seu mar; do seu sol; de suas estrelas; de suas manhãs e de seus crepúsculos. Saudade de tudo...)
     E passo a contar por que os recordei quando, de táxi, passei pelo QG do Exército e adjacências. 
     Empregado de um banco cearense, diariamente me encontrava com esses dinâmicos e cativantes gringos das arábias. 
     Suas lojas e escritórios concentravam-se naquelas imediações, eu lhes levava a correspondência bancária, cumprindo minha  tarefa de estafeta.
     Ralava, sol a pino, para garantir o pão de cada dia. Caíam-me pelo rosto, salgadas e sofridas gotas de suor, por conta de um salário limitado.
     Foram as minhas primeiras batalhas pela sobrevivência, às quais hoje me recordo, com infinito orgulho.
     Registrei, numa leve crônica, aqueles momentos do meu começo;  no firme propósito de um dia publicá-la.
     E quando me foi possível fazê-lo, cadê a crônica? Nunca descobri que fim ele levou. 
     Mas guardei na memória um parágrafo que escrevera, alimentado pela fantasia dos meus líricos 18 anos. 
     Tentarei reproduzi-lo. Assunte só, como se diz cá na Bahia. Coloquei os gringos circulando, descontraídos, pela Praça do Ferreira, com um detalhe: os homens de turbante e as mulheres de burkas e xadors!
     Mulheres protegidas pela burka e pelo xador misturadas às cearenses, de moreno exuberante, em trajes sumários, prococando, num cenário nordestino, um contraste admirável.
     Bolara isso, na certeza de que não estava a imaginar cenas absurdas.
     Rachel de Queiroz, em significativa página sobre sua terral natal, deixou escrito que "o árabe foi o estrangeiro que melhor se adaptou ao Ceará".
     Quando vejo hoje os países árabes em conflito, ensanguentados, recordo-me dos cordatos gringos - que galegos legais! - que conheci em Fortaleza, nas proximidades do Quartel General, na sua incansável luta pela vida.
     Eles com o seu Alcorão e eu com a minha Bíblia.     
     Eles olhando para Meca e eu pro Vaticano.     
     Eu conversando com Deus e ele com Alá.
     Todos nós numa boa, num mundo sem bombas; num Ceará feliz...
     Aqui, meu caro leitor, "...lances que a memória recria todos os dias", como diz o Carlos Heitor Cony, no seu formidável Eu, aos pedaços, relembrando sua história ressuscitando o seu passado...  
 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 24/08/2010
Reeditado em 11/12/2010
Código do texto: T2456145