MENTIRA E SOCIEDADE
Com maior ou menor regularidade, o tempo quente acabou por se instalar e os comportamentos mais imediatos mudaram. Os calções e as saias substituíram as calças compridas, blusas cavadas e troncos nus fizeram esquecer os casacos, os guarda-sóis passaram a impôr-se sobre os chapéus de chuva, que deram lugar aos outros, para nos protegerem do sol. O ano lectivo aproximou-se do fim e um período longo de trabalho, nos mais variados empregos, começou a acentuar necessidades de pausa. Por fim, as férias abriram-se em promessa de descanso, famílias inteiras avizinharam-se do mar, a criançada pôde finalmente usufruir do pleno direito à brincadeira e o convívio entre famílias teve mais oportunidades de concretização.
As crianças - que são os nadadores-salvadores de muitos convívios, até familiares - passaram a encarar os mais velhos com a veracidade natural com que enfrentam os outros miúdos, revelando segredos que aos adultos não convêm e opinando verdades sem qualquer receio de magoarem os demais.
O conceito de «verdade» constitui, com efeito, uma das contradições da educação em sociedade, já que passamos a vida a alertar as crianças para o facto de que «mentir é feio» mas não perdemos tempo em repreendê-las por revelarem conformidade entre o que dizem e o que verdadeiramente se passa: «Então, Pedrito! Foste dizer à senhora que ela é gorda?! E tu, Francisca! Não voltes a afirmar à tia que o meu bolo de chocolate é bem melhor!».
Deste modo, a exactidão, a fidelidade das representações que se fazem em relação ao modelo e os procedimentos sinceros - bem como a espontaneidade - vão-se perdendo, desde a infância, para que fiquemos formatados a uma sociedade que, embora impondo a verdade como valor, nos ensina - desde muito cedo - a mentir.
Por muito que nos custe reconhecer, a «mentira» constitui uma «competência» na arte de se viver em sociedade. Apesar disso, é frequente ouvirmos condenar as crianças que mentem, havendo adultos que o fazem «com quantos dentes têm na boca» e outros (para além de «Marta»: essa «mente como sobrescrito de carta») que sabem «mentir como cesto roto». E quantas vezes, como diz um outro provérbio, «a mentira chegou ali e armou rede»?
É, de facto, muito fácil passar-se da mentira «socialmente necessária» e «quase inofensiva» à mentira que perfidamente convém para atingir desígnios pouco claros, em total ausência de escrúpulos. Há mentiras cujo objectivo final é desacreditar os outros publicamente, difamando-os. Acontecem rumores infundados que se tornam notícia: ouvidos, acrescentados e tantas vezes repetidos, quase deixam de ser boato, tornando-se (para gáudio de muitos - se ambiciosos, medíocres ou invejosos) em provável realidade.
O jogo social refinou-se a tal ponto que, hoje mais do que nunca, elogia-se em presença para desacreditar na ausência, afirma-se como « verdadeiro» aquilo que se sabe ser falso, dão-se informações nada fidedignas só para induzir o interlocutor em erro e todos nos sentimos num mundo artificial e de enganadoras impressões. Mas há pessoas que não mentem nem deixam de mentir, nunca se afirmam, em nada se comprometem. E outras que só proferem meias verdades - duvidosas - com o intuito de nos darem cabo do juízo.
Essa «competência social», encarada como um «mal necessário» mas não «defensável», exorciza-se nas consciências através de alterações ao vocábulo original - que transformam a «mentira», punível, em «mentirinha», «mentirada» ou «mentirola», tornando a peta quase inofensiva - ou juntando-o a adjectivos que, de tanto suavizarem o conceito, quase o tornam louvável: «a mentira piedosa». No entanto, são essas «armações» - ou o receio delas - que nos tornam desconfiados, contraídos, descontentes e insatisfeitos.
ANTÓNIO CASTRO
In Revista "Saber"
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