UMA DA MATINA

Nem sei se a cidade dorme. Hoje os costumes são outros. Houve época que todos dormiam cedo e acordavam cedo. Acordavam junto com o sol. O amanhecer tem seus encantos. O ar parece ser mais puro. O silêncio faz bem a alma. O canto do galo convida para um despertar harmonioso. Harmonioso com a natureza, com a vida em sua plenitude.

Feliz daquele que escuta o cantar do galo. Que está longe do barulho do progresso que tem suas vantagens e às vezes não tem. Hoje são poucos os que acordam com o sol. E mesmo aqueles que acordam com o sol pelo dever profissional não têm tempo de olhar para ele. Neste silêncio da matina não posso dizer que a cidade dorme. Com a invenção da internet o homem dorme menos. Se fosse possível ouvir o tlec tlec de todos os teclados que os dedos humanos estão a dedilhar neste momento o silêncio seria importunado por muito decibéis.

Mais tarde a cidade se agita. Cada um desperta após poucas horas de sono para um dia de trabalho. Às vezes temos que dar prioridades àquelas atividades menos prazerosa pela responsabilidade que nos obriga a escolhê-las. Talvez seja por isso que o homem hoje dorme menos para poder fazer a obrigação e a devoção. O homem moderno tem um leque de opções para seu dia. Na ânsia de participar de tudo o homem diminui seu tempo de repouso para aproveitar a vida. A máxima: “Quem dorme muito vive pouco”, vale para quem é dinâmico, participativo e inquieto. Perfil do homem do século XXI.

Foi essa hora da matina, que encontrei devoção. O dia agitado, cheio de vai e vem, de fazer, disso e daquilo não me deram tempo para o meu prazer. Agora, já com sono estou aqui a despejar letras no papel. São bobas palavras, sem nexo, sem jeito, vencidas pelo sono, mas alimentam minha alma, me faz bem escrever.

Quem sabe mais tarde serão lidas ou não. O escritor não se contenta em escrever. Ele quer ser lido, elogiado ou criticado menos passar despercebido. Tem uma passagem bíblica que diz: “Seja frio, ou seja, quente não seja morno que eu te vômito”. Ou oito ou oitenta. Elogiar ou criticar, menos a indiferença.

Para Rubem Alves, o escritor mineiro, a literatura é um processo de transformações alquímicas, segundo ele o “escritor transforma sua carne e o seu sangue em palavras e diz aos seus leitores: Leiam! Comam! Bebam! Isso é a minha carne! Isso é o meu sangue! E, se escrevo, é na esperança de ser devorado pelos meus leitores”.

Escrever sem ser lido é como olhar para o céu e não ver as estrelas.

Maria Dilma Ponte de Brito
Enviado por Maria Dilma Ponte de Brito em 23/08/2010
Reeditado em 22/04/2020
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