A PELE

A PELE

Fazer de conta não dá mais, a pele se ressecou e caiu, e outra veio, como acontece com as cobras ou qualquer ser que muda a pele; é da natureza, se não acontece de um modo acontece de outro, porque você pode fazer os diques, mas não pode acabar com as marés, que não obedecem a você, mas à lua e ao sol.

Se me perguntarem o que estou passando diria que estou bem e estou mal uma parte eu sei outra não, tem sido um simples desdobrar, como se um espírito errante procurasse num labirinto a concreta criatura que, sem o saber, nada mais fosse que a outra metade dele mesmo, o retrato de sua incógnita natureza.

Levo uma vida chamada de normal. Digo chamada, porque quando você adentra um pouco mais na vida de cada um vê que não existe vida normal porque normal é um padrão imposto de fora para dentro, um mito, um enquadramento como o de uma máquina fotográfica quando mirada para a paisagem, como se o mundo fosse essa coisa arranjada e ordenada que se quer fazer dele, como se a transgressão não fosse uma necessidade vital, algo que luta dia e noite contra o personagem fictício que só existe na tua cabeça, feita para fazer de de você um normal, um ajustado, um regulado eletronicamente para a melhor performance com o menor custo possível. Normalidade é uma redução, uma abstração; ou é uma tentativa de amputação de algo de indomável que existe em nós todos. A não ser que você inclua no conceito a sua sombra que o acompanha mesmo quando é invisível, mesmo quando te espanta e você sente vergonha dela...

Mas voltando ao inicio, que tenho a mania de me desviar do que estava contando porque uma palavra leva a outra e aí já puxa outra e no fim você estava querendo falar de Deus e se surpreende já falando do Diabo: algo vinha acontecendo em mim, que não sei bem o que é, mas estava mudando, mudando, não só no jeito de ser , mas na alma, cada vez mais inquieta, cada vez mais ansiosa , cada vez mais aflita; e não é a simples erosão do tempo, ainda que tenha a ver com o tempo; talvez seja a clara noção de que após tantos anos bem vividos já não restam mais tantos anos, que o tempo se encarregou de puxar o tapete sob os seus pés, levando a juventude, a maturidade, as paixões, os sonhos, e que mais dia menos dia terei o encontro desde sempre marcado com aquela velha senhora que corta com sua longa tesoura o tênue fio que nos liga a este mundo... Não é só isso, certamente não é; pelo contrário, é uma pulsão de vida, um forte tambor que ressoa , ressoa, que anuncia algo como um nascimento, como se eu estivesse num dado plano em pleno trabalho de parto...

Sonhei com este ser que está para nascer: feio, gordo, traços abrutalhados e terríveis. Estendeu-me a mão: “Eu sou o Você que Você não conhece”. Sua voz pareceu-me a minha , mas vinda de longe e sua história era a minha história mas vista por Ele, como se a visse do outro lado da rua, um Ser com seus desejos, seus sonhos, as suas mágoas, as suas frustrações provocadas pela minha mente normal que não as deixava nascer e viver. “Agora consegui vir à luz do sol”, disse. Isto quer dizer: ele é a sombra do que penso que sou; agora sou a sombra dele, e não posso mais negar quem sou. A mudança é tão intensa que não consiga descrever, mas é algo como ocorre com a terra quando se invertem os pólos magnéticos. Até a minha figura externa, a única forma que do passado sobrou, vem mudando. É a mudança de pele. Olho – me no espelho, sou eu e não sou eu, já não me reconheço. A pele mudou, não há dúvida. Meu olhar é mais ousado, algo novo brilha nele, e meus pés são atados a esta terra, não me interesso por mais pelas coisas que antes me inressavam, mesmo a velha idéia de correr o mundo não me interessa porque sei agora que serei eu, sempre eu, em qualquer lugar do mundo. Me sinto mais completo, depois deste sonho, sem dúvida, mas o fato de ter a minha máscara corroída pela verdade me deixou como que nu, não me sinto mais bem entre as pessoas, porque elas continuam mascaradas e eu não. Tudo o que me perseguia, aquelas fantasias todas, eram quimeras. Era o trabalho de parto do Outro que precisava de ar, que precisava fluir. E estranho, eu que não era nada religioso, passei a sentir a religião como uma parte minha, e a matemática, que eu amava, passou a não ter mais muito sentido – venho me tornando mais instinto, instinto antes de tudo, e aquela minha doçura e aquele meu ar de poeta se evaporaram como o sorriso de uma criança que já cresceu – agora me sinto bruto, com um olhar feroz e ávido e uma certa capacidade de ver dentro da noite, até por ter integrado um ser noturno; e meu pai e minha mãe, já não os vejo naquela alvura idealizada que eu via; são figuras arcadas pelo sofrimento que sempre vi e sempre neguei, figuras de carne e osso, sofridas como todo ser humano é, a missa que sempre mandava rezar por eles perdeu qualquer sentido. Mas o pior é que Ele olha para mim e sorri, feliz por ver a luz, e me sinto envolvido por aquele sorriso de ser liberto, sabendo de antemão que esta fase passará e todo trauma desta inversão será assimilado e que agradecerei a Deus lá na frente por ter permitido que Ele assumisse. Tudo isto é muito estranho e difícil de exprimir. A verdade é que é muito natural apesar de não estarmos acostumados a conviver com o natural, e é necessário, porque como um fruto, devemos expandir dia a dia até a madureza e maturidade completas, quando o fruto cairá do pé, e nós do mundo, sendo necessário que a plenitude se realize para que melhor voltemos ao pó de onde saímos e para onde certamente voltaremos, fechando o ciclo da caminhada da energia cósmica em nós acumulada e que seguirá eternamente se transformando do pó em ser vivo e do ser vivo ao pó de onde veio, ontem, hoje e eternamente, no interminável vir a ser que é o maravilhoso e mágico processo da Vida.

Joao Milva
Enviado por Joao Milva em 22/08/2010
Código do texto: T2452611
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