Manuel Barbosa: Um Pedagogo e um Homem vertical (fragmentos)

Manuel Barbosa: Um Pedagogo e um Homem vertical, ou o Homem do Chapéu Verde?

O Abraço

Por ocasião da presidência aberta do Dr. Mário Soares nos Açores, alguém importante desceu a escadaria da igreja Matriz de Nossa Senhora da Estrela e deu um apertado abraço a Manuel Barbosa. Quem acham que tenha sido? Alguém da comitiva presidencial que o conhecia? Não. Foi o próprio Presidente da República: o Dr. Mário Soares. Manuel Barbosa encontrava-se então de passagem pela Ribeira Grande.

Como explicar o gesto, se um era comunista e o outro socialista? Talvez Mário Soares o tenha feito para se solidarizar com um antigo resistente ao regime de Salazar. Talvez o tenha feito ainda porque soube que lutava contra um cancro. Talvez tenha sido um gesto magnânimo do vencedor da cruzada da Fonte Luminosa contra o partido comunista português. O partido de Manuel Barbosa. Se assim foi, e ninguém consegue entrar na cabeça de ninguém, por que razão Manuel Barbosa se deixou abraçar? Não sei. O que sei foi o que vi com os meus próprios olhos, o meu filho estava a meu lado, eu era o cicerone do Presidente, Manuel Barbosa não conteve a emoção. Como de costume.

Como soubera da presença de Manuel Barbosa? Como soubera quem era Manuel Barbosa? Fora alertado pelo jornalista António Valdemar, antigo aluno e amigo de Manuel Barbosa. Muito a seu jeito, num gesto de perfeito cavalheiro, desce os vários lanços da monumental escadaria da Matriz e envolve-o num significativo abraço.

Já atingido pela doença que não perdoa, nem escolhe idades, nem estatuto, repito, eu vi com os meus próprios olhos, Manuel Barbosa não contém a emoção: chora.

Homem de Chapéu verde? Sim, soube depois, era assim que a PIDE o conhecia sem, contudo, felizmente para Manuel Barbosa, associar o nome ao chapéu.

Como o via

De primeiro, via-o apenas ao longe, não frequentei o seu Externato, muito mais tarde, conheci-o de outra forma: por uma longa e interessante entrevista que me concedeu em 1983. Via-o passar na rua Direita em direcção aos Frades e dos Frades de volta à sua casa na rua das Pedras, usando passos largos, quase marciais, de fronte levantada, cigarro em punho, sobraçando orgulhosamente para quem quisesse ver o ‘Avante’. De modo desafiador. Não se detia a ver montras nem entrava em cafés: fazia-o por regra à noite. Conheci-o também no Teatro, onde foi homenageado em 2004, local onde parece ter ganho nova vida no primeiro comício após o dia 25 de Abril de 1974.

Gosto de meditar nas suas palavras escritas em 1988 nas Memórias da Cidade Futura: ‘a Ribeira Grande não tem cultura de cidade (...) não tem jornais nem livrarias, nem grupos de teatro, nem biblioteca pública, nem centros de recreio e convívio (...) (Todavia) progrediu notavelmente nesta segunda metade do século e está hoje lançada no caminho de adquirir ou aperfeiçoar os atributos de cidade (...)’

Quem terá sido este homem?

Em meados de Junho do ano de 1948, ao descer do velho Ford do ‘cunhado Oliveira, anafado e rubicundo,’ ao transpor a soleira da porta da casa da irmã Margarida, no Cabo da Vila, Manuel Barbosa é um homem de quarenta e dois anos feitos. Homem maduro. É pai de três filhos: Helena e Jacinto nascidos na cidade de Coimbra e Celso em Cavadodo, na Guarda. Traz consigo feitas duas licenciaturas. Conhecia a Ribeira Grande de curtas passagens, de quando ia passar algum tempo de férias à Lombinha da Maia ou em ocasião de estúrdia juvenil. Nada mais. Vem, alertado pela irmã, ver o pai doente, mas também pondera ficar. Clarice, a esposa, hoje a residir em São Brás de Alportel [2004], aguarda com a prole em Coimbra. Manuel Barbosa já não via a ilha há vinte anos. Para este militante da oposição clandestina a Oliveira Salazar, sem emprego seguro e com a PIDE [Polícia Internacional de Defesa do Estado] a apertar o cerco, a Ribeira Grande iria transformar-se na sua casa durante os vinte e sete anos seguintes. Vinte e sete anos de completa dedicação à educação e um ou outro encontro fugaz com a advocacia. Segundo ele próprio. Ponta Delgada, Coimbra e Ribeira Grande ficar-lhe-ão para sempre gravadas bem fundas no coração.

Por esta altura, Ezequiel era, aos cinquenta e cinco anos o patriarca cívico da terra, morrera em 1943 o Cónego Cristiano, o Prior Evaristo exercia um extraordinário múnus sócio-religioso, Jorge Gamboa, quarentão, acumulava as funções de clínico no Hospital com as de Comissário Político do regime salazarista, Costa Leite chegara, há pouco, aos vinte e cinco anos, à Ribeira Grande e Edmundo Machado Oliveira, um jovem de vinte anos, aprendia ainda o dó, ré, mi e o rosa, rosae, no Seminário Diocesano em Angra do Heroísmo. Estaria, provavelmente, prestes a vir a casa de férias. Ezequiel, amigo do cunhado Oliveira, seria um bom companheiro de cavaco no Café Teatro, explorado pelo cunhado Oliveira. Admirava-o apesar de ser ‘católico e conservador.’ O Ezequiel ‘exprimia o seu amor à terra com a vivacidade de espírito, no cerrado sotaque local.’ Escreveu Manuel Barbosa. Partilhavam o mesmo amor pela educação, até, quais dois Sócrates do século XX, o salutar hábito nocturno de fazer da rua Direita uma espécie de tertúlia peripatética. Os filhos de Ezequiel frequentariam o Externato. Jorge seria o seu médico de família e o que operaria em hora difícil Clarice. Apesar de tão distantes ideologicamente, ao que parece, cultivavam urbanamente algum respeito mútuo. Costa Leite acabaria, inevitavelmente, como sucede numa terra pequena, por dar nas vistas, por se cruzar com ele. Cumprimentavam-se. Apesar de agnóstico, casou pela igreja e Clarice sobe os degraus da Matriz para ir à missa. Não pode com o som dos sinos, mas é um apurado melómano. O mesmo se dirá de Jorge e de Edmundo.

MARIO MOURA

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Mário Moura
Enviado por Mário Moura em 21/08/2010
Código do texto: T2451492
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