Oração

Jamais pudemos ler os Manuscritos do Mar Morto. Nossa cultura é rasteira – é cultura pop; de televisão mesmo. É aqui neste mundinho pop que nossas amigas cobras alçam vôo. Elas querem nos picar, mas não por picar – elas entendem que nós lhes somos uma ameaça. Veja só: nós, que só queremos paz, a casa minimamente arrumada, a nossa cria – que vivemos a lamber – educada e alimentada, um pouco de sexo. Que guardem sua desconfiança e sua inveja para os ricos, pois estes, sim, podem, e devem, pagar o preço. Que deixem-nos em paz.

Dias de luta são esses nossos. Um leão por dia. Um ovo de avestruz por dia. Uma cobra voadora por dia. Tem sido assim desde sempre. E no tempo do começo de nós dois já era assim. Quando não eras minha mulher e meu deus, já eras minha companheira de batalha. Em meio às nossas batalhas individuais surgiram as primeiras pelejas entre eu e você. Eu te dizia coisas e você ouvia. Te falei sobre os Manuscritos do Mar Morto e você se interessou muito pelo assunto. Eu tentava te mostrar que o estudo bíblico não poderia ser uma coisa estática e que existiam pessoas no mundo fazendo pesquisas muito sérias acerca de todo tipo de assunto ligado ao cristianismo. Mas eu não era exatamente um pesquisador. E no primeiro estudo bíblico que marcamos, em minha casa, não tivemos como deixar de fazer amor. Te entregaste a mim como Maria Madalena. Assim, eu soube desde muito cedo quem és. E tu, quem sou.

Noto o nosso amor como sagrado. É difícil pra mim isso, já que tenho buscado desvendar o sagrado e torná-lo comum. Cheguei, em dado momento, ao absurdo de, tendo dissecado a igreja como um menino faz com um sapo numa aula prática de biologia, manter, ainda assim, meu próprio altar sagrado imaginário com coisas absurdamente "mundanas" como, por exemplo... o Flamengo. Um ateu torcer para o Flamengo me soa estranho. Se eu posso desmascarar a religião e torcer para um clube de futebol, eu não posso ser levado a sério pelos religiosos. Pois crer no Flamengo é a coisa mais idiota que pode existir.

Mas começo a traçar um plano pessoal de aceitação ao sagrado instituído. Pois descobri que é o sagrado instituído o que me aborrece. Não me abstenho de cultuar seres. A minha dificuldade é respeitar uma adoração forjada, católica, pomposa e ritualizada ao extremo, porém sem muita sofisticação no que diz respeito a sutilezas na concepção da mensagem de racionalidade. Contudo, meu plano é aceitar com mais tolerância – porque não até mesmo alegria e admiração (?) – esta face do sagrado: o sagrado católico. Quem pode torcer para um time de futebol pode – e tem a obrigação de – acatar qualquer forma de culto.

No fundo, acho que amo certos rituais. Gosto tanto de rituais que, de certa forma, ritualizo qualquer banalidade do dia-a-dia. Gosto que minhas refeições obedeçam a um pequeno ritual, incluindo nisto desde o ato de prepará-las até o momento de degustá-las com reverência e respeito. Gosto que o sexo seja algo, digamos, solene. Gosto de beber vinho tinto em ocasiões especiais. Reconheço algumas ocasiões como especiais – e isto é ritualizar. Mas, por alguns motivos, os ritos religiosos não me agradam muito. Não me agrada os tambores e a inquietação que induzem ao transe nas sessões de cultos afro-brasileiros. Nem a paz das missas, onde parece haver soprado um vento divino que transformou todos em espécie de clones teleguiados. Nem a técnica de auto-afirmação dos cultos evangélicos. E o espiritismo de Allan Kardek(?): quer explicar tudo; com uma dissimulada tranqüilidade de quem parece tudo saber. E o budismo(?): explica muito pouco. Mas budismo é que nem beisebol: é mais fácil entender para quem nasceu nele. E que graça tem beisebol? Eles, os norte-americanos, não vêem muita graça é no futebol, o soccer, que nós, brasileiros, amamos. É o estranho poder exercido pelo berço em que nascemos sobre cada um de nós – até o fim de nossos dias.

Eu sei que a percepção ou o simples gesto de acatar, sem conflito, o mistério e a transcendência que há nas coisas mais bobas da vida, faz com que as pessoas cresçam em felicidade. Se pudermos ver a grandeza de uma formiga ou de uma lesma, quanto mais a nossa... Não querer desvendar mistérios com a obrigação de um cientista – embora os cientistas sejam seres enormes – , mas, sim, aceitar e reconhecer a presença da face misteriosa da coisa.

Não me é novidade o fato de que oras para mim. Eu sei: estou nas tuas orações. Te sou grato por isso. E, sem uma gota de sarcasmo – algo que repugno – , eu poderia pensar em uma oração, onde eu pudesse também te colocar. Eu pediria ao misterioso Deus, que eu não conheço, perdão por ter, muitas vezes, forjado Sua imagem para que eu pudesse fixar meus pensamentos em algo tangível. Pediria perdão também por ser eu um dos poucos habitantes deste planeta que duvidam, na maioria das vezes, da existência Dele. Perdão também por não pedir a Ele ajuda nos momentos difíceis, e por considerar que, durante as orações, Deus somos nós mesmos. Agradeceria a este mesmo Deus pela perene dor e delícia do mistério, sem o qual não haveria a poesia, a música e a astronomia. Agradeceria pela presença, em minha vida, de mulheres tão importantes, como, por exemplo, a que me concebeu e a que eu concebi. Pediria a Ele, por fim, que ajudasse a África, para que, assim, eu pudesse crer que Ele, de fato, existe e se preocupa com os homens. E pediria também para que Ele fizesse com que tua vida fosse, sempre, um sonho bom.

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Luciano Fortunato
Enviado por Luciano Fortunato em 20/09/2006
Código do texto: T245028