(SOBRE A CIDADE DO PORTO) - VISITAR E CONHECER...

É à beira-Douro que a cidade se abraça. O casario aconchega-se, com medo do frio, o quotidiano acontece em aproximação tal, que o individual se torna, inevitavelmente, parte integrante do colectivo.

Os barcos deslizam no rio e um artista de qualquer rua, talvez Escura, dá alma a um violino. Aquela paisagem imponente, magnífica e única, contrasta com o vetusto casario, gasto pelos maus tratos contínuos do tempo...

No pulsar da Cidade, os estrangeiros coram nas esplanadas, como roupa no estendal, e um falaraz exibicionista fura a paz e os pensamentos, com acutilâncias de alfinete. Há sempre alguém que nos invade o silêncio, teimando em impedir que o voo interior se reflicta no olhar e balance com as ondas, ao encontro do enleio e do sonho. E esse é um salutar arquivo de energias, que nos aprovisiona de cores para o confronto com os vários quotidianos cinzentos, que o futuro (também) trará. Daí a necessidade de assinalarmos, com sentido proibido, aqueles incómodos de aranha voraz, que são as recordações do passado e as preocupações do futuro. São alturas em que a grande questão se coloca no saber fintar as vielas ardilosas da vida, fincando parêntesis nas obrigações e nas agruras, assenhoreando-nos do espaço e do tempo interiores, como a gaivota no azul, que é o tecto do rio.

E o leito do Douro corre, sem horários ou normas, preocupações ou juízos...

Perante o dever e a vida em sociedade, de vez em quando é bom não estar, para se poder ser, saboreando a essência em golinhos miúdos.

As gentes multiplicam-se, nas esplanadas e nos graníticos edifícios, que o turismo conserva. Uma placa assinala o Postigo do Carvão, sobrevivente da muralha fernandina do século XIV. Uma turista galga a pedra e esmera a pose, para o fotógrafo amado. Por fim, um qualquer relógio há-de cortar o devaneio e a subida revelar-se-à inevitável, até ao real, até ao coração da Cidade.

Lá em cima, quando o Porto se afasta do rio e depois da zona central, com o principal comércio e serviços, o crescimento vai-se estendendo em particularidades e dicotomias: da Boavista - enriquecida por vivendas bonitas e andares de luxo - às Antas e à Foz, onde o mar apetece, mas também ao Aleixo e ao Cerco, bairros problemáticos da Cidade.

As urbes são o espelho dos cidadãos, tal como as casas constituem a principal marca das gentes na paisagem. Há partilhas patrimoniais que transformam vivendas em esqueletos degradados, comportamentos que geram sujidade e desleixo, disfunções sociais que são raiz de violência. Há burlices descaradas, pobreza envergonhada e dramas que corroem em silêncio.

Entretanto, o trânsito entope. Uma funcionária fecha a loja e corre. Um adolescente, diante de um espelho na montra, põe todo o drama de vida nas borbulhas. Nesse preciso instante, acontecem novos amores e vários divórcios, uns nascem e outros morrem, os acontecimentos deslizam como barcos...

Como é importante que os turistas não digam "conheço o Porto", se apenas forem à Cidade sem o tempo necessário para lhe interiorizarem a azáfama, os odores e o colorido. Como é bom os seres saberem parar, para medirem à urbe o borbulhar e, ao seu eu, a pulsação.

O que realmente importa, é que cada um não se limite a passar apenas pelos dias, como o combóio na ponte, rumo ao seu destino inevitável.

ANTÓNIO CASTRO

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(António Manuel Antunes de Castro)
Enviado por (António Manuel Antunes de Castro) em 20/08/2010
Código do texto: T2450003
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