Gaúcho de brinco
- Tem certeza não vai doer?
- Olha, dói só um pouquinho...
O problema foi a ênfase que a dona da farmácia deu nesse "pouquinho", me deixando com a pulga atrás da orelha. Aliás, orelha é o tema principal dessa minha prosa. Tinha ido na farmácia decidido a furar a orelha e pôr um brinco. Nem queria lembrar que há alguns anos me divertia gozando de meu amigo Cristiano quando ele colocou um.
- O Cristiano é veado mas é meu amigo. Rê,rê,rê...
Imaginei que o Cristiano iria se vingar muito de mim quando me visse de brinco. Tinha decidido pôr um como forma de mudar alguma coisa em mim, afinal, me sinto uma pessoa diferente, mais aberta para o mundo, mais bem humorada, mais segura de si.
Já tinha comentado dessa minha vontade para o meu chefe e editor do jornal, João Lemes, para saber o que ele achava.
- Bah, acho legal. Nós, jornalistas, temos que ser diferentes. Eu também estou pensando em colocar um brinco depois que estiver com as orelhas bonitas.
Esse "orelhas bonitas" que ele se referia era antes de fazer uma operação plástica para corrigir as orelhas em abano. Não quis gozar do João, dizendo que achava que plástica nas orelhas era coisa de veado, pois ele poderia retrucar que brinco nas orelhas era mais coisa de veado ainda e eu iria sair perdendo.
Quando cheguei na farmácia para pôr o brinco, imaginei que a dona iria me levar para um salinha à parte, me pôr sentado, oferecer um cafezinho ou um copo d'água, medir minha pressão. Depois, iria dialogar comigo se eu estava certo de minha decisão de pôr um brinco e, aí sim, me furar as orelhas. Mas não. Ali na frente de todo os clientes da farmácia ela foi retirando uma pistola da gaveta. Enquanto escolhia aquele que seria o meu brinco ela me encostou alguma coisa na orelha.
- Ai!
- Calma, só estou marcando com um lápis o local para furar.
Ufa. Ela me assustou. Em seguida, veio com a tal pistola para o meu lado. Pensei "ainda dá tempo de desistir". Já outros clientes que estavam por ali, me olhavam, certamente pensando. "Um baita macho botando um brinquinho. Deve ser veado". Já estava sendo julgado pela sociedade, ou pela minha própria cabeça. Quando a dona me encostou a pistola, não deu outra:
- Iahhhuhhhuiii!
Num tom não muito alto, dei um daqueles gritos que o Pateta soltava no desenho quando despencava de algum lugar. Um funcionário da farmácia parecia estar controlando a risada, enquanto eu controlava o choro.
Pois bem, depois que cheguei no jornal, mostrei para todo mundo, menos para o meu chefe, o meu brinco e todo mundo aprovou. Na hora do lanche, estávamos no pátio, quando o Denilson viu o João passar ao longe e fez menção de chamá-lo. Eu o impedi.
- Não chama, senão ele vai ver o meu brinco!
- Ah, ele não viu?
- Claro que não!!!
Conhecendo o Denilson como conhecia, sabia que ele iria querer me sacanear.
- João, vem cá. Tu viu que o Márcio colocou um brinco???
Nosso chefe ouviu aquilo e se dirigiu rapidamente para o nosso lado. Ficou me olhando e depois disse:
- Bah, ficou legal. Eu também queria colocar um brinco agora que estou com as orelhas bonitas.
Quá, quá, quá. Soltei a minha risada, enquanto o sorriso do Denilson murchou. Tomou, papudo!
O problema é que, quando estou escrevendo, costumo puxar a ponta do nariz e das orelhas com o dedo indicador e com o polegar. Sei lá, mania, como forma de "puxar" a inspiração de dentro da cabeça para escrever. Numa dessas, esqueci do tal do brinco e puxei a orelha esquerda com vontade. Resultado:
- Iahhhuhhhuiii!