Zé Ferreira e o autocontrole do sábio
Itamaury Teles
Noite dessas, o Zé Ferreira voltou a aparecer-me em sonho. Nem bem sei se era sonho ou se ele ali se encontrava materializado, à minha frente, como se vivo ainda estivesse.
Eu praticamente passara a noite em claro, refletindo sobre a vida, assaltado por uma série de preocupações e dissabores inerentes ao nosso dia-a-dia. Daí minha dúvida sobre se estava em vigília ou se em sono leve, quando ele apareceu.
Pois foi nesse estado que o Zé Ferreira – o filósofo ermitão do Rebentão dos Ferros – me abordou, com seu jeito matreiro.
- Que cê tem, Tamaury?
- Tô preocupado com umas coisas, Zé.
- Com o quê, rapaz?
- Principalmente com certas coisas que falaram de mim...
- Quês coisa é essas?
- Chamaram-me de trêfego e vaidoso, numa crônica de jornal. E eu fico de cá matutando até que ponto a pessoa tem razão...
- Matutar é bom. Mas esse tal de trêfgo é dicumê ou dipassá no cabelo?
- Antes fosse, Zé. Segundo aprendi no “pai dos burros” é alguém hábil para ludibriar; astuto, esperto, sagaz, manhoso. Ou aquele que se agita sem cessar; turbulento, irrequieto, traquinas...
- Eita. É muito insulto, siô. Quem escreveu isso pegô pesado com cê, Tamaury. E esse tal de vaidoso? Quê qué isso?
- Ah, Zé, vaidoso é quem deseja ter reconhecidos seus próprios méritos intelectuais; que sente ou demonstra orgulho pelo sucesso obtido por ele mesmo ou por um parente próximo; ou que se considera melhor, mais bonito, superior aos outros em alguma ou todas as suas qualidades. Um presunçoso.
- Esse aí é maisomeno. Ocê como escritô, deve ser um pouquim disso mesmo. Mas qué sabê de uma coisa, meu amigo? Liga pra isso, não. Vou até te contar uma estória que ouvi de um véi muito sabido, que morô aqui no Rebentão.
- Que estória é essa, Zé. Conte aí...
- Numa ocasião, eu tava num boteco nas Cabecêra, tomano uns golo mais ele, e chegou um caboclo valente, procurano briga cum todo mundo. Fiquei quéto no meu canto e ele num buliu cumigo, não. Buliu foi com o véi Macelino. Véi Macelino era home respeitado aqui, mas recebeu um monte de insulto desse sujeito. O rapaz pisô no pé dele, passou a roseta da ispóra na perna dele, tomou a pinga dele e, por fim, cuspiu na cara dele e ainda chamô ele de corno véi. Uma covardia sem tamãim, moço.
- E o velho Marcelino não reagiu a esses insultos e provocações?
- Reagiu nada! Ficô quéto. Tulerô tudo caladinzim. Todo mundo lá ficô foi cum raiva dele. Até o valentão foi imbora cuspino marimbonde. Muita gente achava que ele divia partí pra ignorança, dá umas panada de facão naquele safado. Mas ele, nada... Nem tium! Ele era um homem sabido. Num era igual nós, não... Ele virô pra nós tudo lá e fez uma pergunta: - “Se alguém chega até ocê com um presente, e ocê num aceita, de quem é o presente?” Aí, Totonho das Côvi saiu na frente e respondeu pro véi Macelino: - “Uai, o presente fica com quem quis dá...”. Foi aí que o véi Macelino falou uma coisa que eu guardo até hoje, e talvez serve procê: “Pois o mesmo vale tombém pra inveja, pra raiva, e pros insulto. Quando nós num aceita, continua pertenceno a quem carregava eles”.
Depois dessa sábia mensagem de tolerância e autocontrole, Zé Ferreira desapareceu, em meio a uma diáfana névoa que logo se dissipou. E eu dormi em paz...