Nuvem sobre o Largo da Carioca

O Rio de Janeiro começou bem ali na Praça XV, local do desembarque solene de D. João VI e a família real de Portugal, em 07 de março de 1808. Com o tempo, foi avançando mais e mais, chegando à Travessa do Paço, Passeio, Lapa, Uruguaiana, Rua da Carioca, Praça Tiradentes, Rua Frei Caneca, Campo de Santana, Praça Onze, formando o grande Largo da Carioca, pode-se assim dizer.

Esses os nomes atuais das ruas e Praças daquele longínquo Rio, que a natureza nos presenteou com todas as suas belezas naturais deslumbrantes, salientando-se de cara a Baía da Guanabara, que encantava o mais dos distraídos visitantes. É o Rio central, se destacando o Largo da Carioca, cuja foto ganhadora serve de mote para o concurso “Contos do Rio”. Este Largo, hoje, está cercado por inúmeros arranha-céus. É o moderno quase que engolindo o velho, como, aliás, costuma acontecer com as novas gerações empurrando as antigas para o forçado exílio, para o esquecimento, pela falta de diálogo entre as gerações que se sucedem.

Na fotografia do Largo da Carioca, coração da cidade, ainda maravilhosa, apesar de tudo, vemos uma enorme e branquíssima nuvem compacta, lembrando um grande tamborete, de tampo redondo. O poeta, que enxerga mais longe, e que não tem escrúpulos de misturar os sentidos, tão pouco se importando com a realidade, diria que é o tamborete da baiana: vendedora de vatapá, caruru e acarajé. Esta visão do poeta, incorporando o que não existe mais, logo me faz vibrar e recordar dos meus tempos de menino, quando costumava ir de bonde até o centro do Rio. O fim da linha dos bondes da zona sul ficava, exatamente, no chamado “tabuleiro da baiana”, uma grande marquise quadrangular, fazendo fronteira com a rua Senador Dantas.

Quantas vezes peguei o bonde nº2, Laranjeiras, na rua do Catete, rumando para o Largo da Carioca. Sim, no Largo, além do relógio grandão, no meio da praça, do Convento, e parte do Morro de Santo Antônio e da Igreja, retratados pela fotografia ganhadora, ficava o famoso “tabuleiro da baiana”, com aquele movimento intenso de passageiros entrando e saindo dos bondes. Era um Rio ainda jovem, décadas de 1940/1950, um Rio romântico, ingênuo, alegre e muito, muito amistoso. Era um Rio-Moleque!

Dizem os mais antigos que o Largo da Carioca perdeu a sua personalidade, perdeu seu encanto. O “Tabuleiro” era aconchegante, bonito de se ver, e dava até para namorar dentro daquele lindo terminal de bondes. Atualmente, o Largo da Carioca parece mais um corredor que serve apenas de passagem para as pessoas apressadas se dirigirem, quase sempre, para a zona norte da cidade. Até os pobres camelôs que lá existem não conseguem atrair a atenção dos pedestres. De dezenas de teatros de revista da Praça Tiradentes, ainda resistem ao tempo os Teatros Carlos Gomes e João Caetano. Das célebres gafieiras, restou a Estudantina, onde se dança o verdadeiro samba carioca, mas sem os “bons malandros”, de então. São outros tempos... Nada mais que nos acelere o coração, quando dizíamos alegremente: “vou à cidade, vem comigo?”

Ainda bem que os mistérios continuam e os poetas teimam em viver, dando sabor às nossas vidas. Pois não é que o fotógrafo nos mostra o triste Largo da Carioca, sufocado, diria mesmo, esganado pelos altos edifícios, com o “Tabuleiro da Baiana” bem em cima de nossas cabeças!? E como diria Monteiro Lobato, falando de literatura e da capacidade do escritor de fixar momentos da alma de um povo, esta fotografia acabou por tornar permanente um instante nobre do povo carioca, perdido no tempo e no espaço, que os jovens nem desconfiam que já existiu. Não tivesse despontado essa nuvem mágica, gigantesca, por obra dos Deuses, para nos trazer de volta a imagem antiga e completa do Centro do Rio, através da imaginação poética, como diria o poeta Manoel de Barros, o fotógrafo mostraria apenas uma paisagem morta, sem o coração vibrante da cidade mais brasileira e sedutora do mundo.