Proposta decente
Lara vive. Se não vivesse, triste, muito triste eu estaria. Penso cá com meus botões: não faria Deus, isso comigo. Ele é meu AMIGO.
Que prepotência a minha, achar que Ele é aliado nas minhas picuinhas. Mas vem cá, falo de filha, não falo de coisa banal; de alguém que saiu de longo internamento em um hospital!
Deus tem tantos cuidados. O que seria para Ele encontrar uma agulha no deserto? Nada, absolutamente. Tudo bem, tudo bem que médicos trabalharam, enfermeiros e tudo mais, tudo bem. Mas tem coisas que não me saem da cabeça. O vai e volta, a infecção que não cedia, as altas que foram suspensas. Cada uma delas fazia meu coração ir à boca.
Pensar que uma filha se estenda fragilizada num leito... que seu mal estar é maior que sua preocupação com o filhinho há pouco tempo nascido, é de doer. E como dói.
Nunca na minha vida pensei com tamanha compaixão, nas mães que enterraram seus filhos. Falei com Deus no meu silêncio mais profundo: "Sei que meu crédito é minguado. Sei que minhas qualidades são basicamente o mínimo necessário; que não tenho moeda para barganha, mas vamos negociar. Seu filho Jesus, nos deixou importantes legados, que procurei durante toda minha vida, guardar feito jóia dentro de mim. Eu Te ofereço o amor que tenho por Teu Filho em troca da vida da minha filha. Como lambuja Te entrego a minha própria vida. Não vale muito, mas poderás usar do meu corpo, alguns órgãos, que se encontram em bom estado; com eles poderás salvar outras pessoas que tenham o merecimento da vida".
Deus demorou para me dar respostas. Parecia esperar que eu lhe oferecesse algo melhor. Fiz minuciosa reflexão sobre os valores que possuo. Não tenho nada. Nunca tive. Por várias vezes caí de joelhos. Não, não para orar porque não acredito que Ele precise da minha exposição física, mas por que a dor pesou demais. Se dor no joelho fosse para mim garantia da cura de Lara, não tenham dúvidas, eu estaria de joelhos e assim viveria para sempre.
Apelei para os sentimentos. Fiz chantagem. Não vou mentir, nem enganar. O tempo estava passando, a infecção tomava outros rumos. Aquele corpo já fragilizado por natureza não poderia resistir por tanto tempo. E Deus, nada de me responder. Me pareceu a certa altura que Ele me ignorava.
Sou neta de "correntino", teimosia é uma das minhas marcas e ELE sabe disso, sempre soube. Não fosse isso, e eu não estaria chorando e implorando pela vida de uma filha; eu já estaria morta. Nem tinha vingado. Tratei-O com carinho. Na verdade, com muito respeito, e joguei tudo o que eu tinha naquele negócio. Mas mudei a tática.
"Deus, olha bem para o coração e alma de minha filha. Veja em ambos o que existe que tenha validade neste mundo. Não quero mais negociar, mas preciso de certas garantias. Não quero que ela sofra. Esqueça a proposta que Lhe fiz anteriormente e vamos definir metas possíveis e menos sofridas para Lara. Eu a amo mais que a minha vida, portanto, não quero vê-la sofrendo. Se for para ela sofrer indefinidamente, tome-a, é Tua. Daqui ficarei zelando por ela e por todos os que partem e sofrem. Agora, se houver uma mínima chance de ela levantar daquela cama, então, SENHOR DA VIDA, eu lhe peço, cure-a. Ela é valiosa ferramenta de Tua Santa vontade neste vale de lágrimas, agindo em favor de filhos teus, sabes disso. Se Tua opção for levá-la, contarei com o amor de Teu Filho, para suportar a separação, pois sei que não é para sempre.
Sabendo que nada mais adiantava dizer, murmurei um "muito obrigada", comovida com minha própria proposta. Decidi, então, que a vida voltaria ao normal (na medida do possível), pois meu velho amigo que mora embaixo da ponte carecia de alimentos; a mãe recém viúva que mora na favela, se encontrava enferma e sem recursos. Era preciso agir. Eu segui fazendo o que Lara faria se não estivesse num hospital. Na certeza de que Deus é Pai e a ama. Crente de que ELE mesmo não me dando respostas faria o melhor. O melhor Dele seria o melhor para ela, mesmo que fosse o pior para mim.
Lara levantou. Deus a curou sem me dizer uma palavra. Só posso pensar que Deus estava naqueles dias muito ocupado. E tirar a minha vida seria acumular mais trabalho. Penso mesmo que Ele se aliviou um pouco quando saí de casa para fazer a minha parte. Trabalho que Ele vinha fazendo a "duras penas", pois não é fácil encontrar mãos para ações monetariamente não gratificadas. Por outro lado, penso que Deus percebeu que Lara é mais importante no mundo, onde costuma agir para que Ele tenha mais tempo. Não sei. Tudo o que sei é que mesmo não me dando muita atenção, Deus tem um amor enorme por mim. Afinal, indiretamente cuidou com carinho da minha felicidade.
Ah, quanto a mim, no mais profundo silêncio, tenho dito a todo o momento, obrigada Pai Maior, pela grande lição de vida.
Irami Gonçalves Fernandes Martins