A lenda da casa colorida I
A lenda da casa colorida I
Sandra Ravanini
O paraíso
Amanhã...
O século seguinte pintará os seus dias tingidos de tentativas frustradas; dirá da queda espedaçadora das mãos doentias, usará a vergonha como as roupas lavadas no próprio sangue dentro de um balde irmanado nas revoltas das águas imundas.
Sem falas e quase sem nomes, os filhos da casa colorida ainda rirão das sobras paupérrimas dessa herança, pois que houve risos e pincéis sedentos para milagrar a lenda inacreditável dos loucos.
Pobres loucos!
Só sonharam as desgraças da realidade, mesmo dormindo; discutiam com as vozes bruscas, supliciando as gargantas cansadas de tanto pedir uma gota balsâmica, mas só caíam goteiras contaminadas nos dias de chuva dentro do mesmo balde de plástico vagabundo.
Na falta de baldes, usavam-se as panelas, e já que havia mais goteiras e buracos do que utensílios, os panos faziam sua parte, chupando a aguaceira toda.
O relógio irritante da goteira tiquetaqueava com a mesma estupidez hipnótica das pessoas que buscam algo que não existe, andando de lá para cá sem saber por que estão andando, esgotadas de tanto ver o reflexo na sujeira das águas, sem reconhecer na face amarelada a semelhança de quem olha dentro de si, sem notar que se é um apalermado prisioneiro de um balde sem alça acenando de baixo para cima, educadamente respondendo ao aceno da mão numa linguagem irônica, de cima para baixo, dominando a situação sem controlar a entidade devoradora que está dentro do balde.
Restava a vinda da bonança depois da tempestade e mais a tortura de ter que subir ao telhado a fim de remendar as fendas com a cola do inventor do mundo, feita de qualquer coisa que pudesse ser derretida.
Durava até a próxima chuva e nenhum um segundo a mais.
Os risos não ecoavam na casa das lendas.
Morriam engasgados na ilusão da boca, fechando a repetição, anulando os sons; escondendo-se apavorados dentro do estômago sendo comido.
Alimento invisível, o riso comido era o remédio de todas as dores, um sorriso com gosto de cola feita de plástico.
Ninguém mais reverenciará as janelas eternamente podres, por onde pulavam os filhos na hora dos atropelos, na hora H, quando um resto de inteligência pulsava mais alto que a valentia pulando mais alto que a coragem e a resistência dos soldados franceses, mais alto que Napoleão em pessoa... que era de baixa estatura.
Vistos de fora, pareciam piolhos disfarçados de gente, fugindo do veneno, ladrões fugindo da cadeia alimentar em plena luz do sol; um forno apropriado cheio de temperos naturais.
A liberdade é uma janela apodrecida, com insetos vorazes esperando a passagem dos gritadores que caíam.
Heróis e heroínas aguardando alguma aranha tecer com os seus fios transparentes a infindável bandeira da paz ou, quem sabe, envenenar o monstro quase mitológico com seu belo nariz reto e face de deus, o qual tinha um palito de dentes incrustado do lado da boca, o que dificultava a concentração e o entendimento das meias frases: o palito dançava durante a apresentação da boca e as palavras eram empaladas no meio dessa dança cósmico-bucal em pleno cio de xingamentos.
Um dia, a aranha pacifista foi comida pela lagartixa interrompendo a negociação com o futuro.
Devorada e defecada: assim morreu a paz — ninguém soube —, e a lagartixa também morreu intoxicada de paz, ou ficou obesa de tanto comer os insetos da liberdade.
A lagartixa foi encontrada de barriga para cima, perto do velho guarda-roupa cheio de cupins, único cortejo ali reunido e posto a correr tão logo a vivente dama da lenda colorida chegou, empunhando o balde e a vassoura, tentando limpar a alma e o impossível, lavando todos os amanhãs e secando para sempre os desejos de paz e de liberdade, torcendo o conceito das crenças futuras junto com os panos de chão.
Torcendo e retorcendo o passado, o presente e os hojes repletos de insetos assassinos, baratas com olhos cheios de medos, cupins empalados nos palitos de dentes encontrados no chão — rastros do monstro mitológico — e carrapatos assados em algum momento esquecido do esquecimento, sentenciando a purificação.
Ninguém vestiu o traje de luto e a lagartixa traidora foi execrada, jogada num saquinho branco — daqueles de supermercado —, e seu corpo triturado pelo caminhão do lixeiro, sem nenhum minuto de silêncio.
Pondo um fim em toda a fé que há em um réptil.
Ainda amanhã...
Cada mania carregará um louco que falará sozinho, um outro louco arrebentado por dentro, um louco que se trancará dentro de um quarto branco, matando insetos que falam, baratas de roupas pretas e olhos vermelhos, cupins de chapéu de palha, loucos roubando a insanidade uns dos outros, todos ligados às raízes do ontem, procurando pelos cantos a maldita lagartixa que comeu a aranha.
Aquela que tecia a bandeira da paz tão rogada e poderia ter convertido a lenda em uma história moralista e iluminada com enredo mais humano e um final sem traumas, inacreditavelmente dentro do conceito dos que viveram felizes para sempre.
Loucos pobres!
Loucos, machos e fêmeas que enxergaram a liberdade digerida nos restos das fezes de uma lagartixa infiel.
E então, em qualquer dia, em qualquer tempo do verbo fez-se a luz, ou a escuridão se desfez totalmente quando a cortina da sala apodreceu juntando-se à ruína, e todos eles por fim constataram o quanto de sangue e fezes custaria à liberdade e à paz, e sentiram um cheiro ruim pairando nas narinas retas e belas...
Cheiro de cocô de réptil traidor, branquelo, gelado e escorregadio, totalmente responsável pelas manhãs sem amanhãs.
Que fique constatado: o monstro mitológico de nariz reto e face de deus, Edem, era o único louco feliz e até hoje o é.
Vive em seu paraíso delegando ordens às tintas misturadas, à nova geração de percevejos e todo tipo de animal encontrado na rua.
Quem não tem um monstro palitando a ideia com mil tentativas de suprir a saliva insossa, engolida a esmo, por não ter o que engolir?
O grande inventor e provedor do lendário hospício cheio de goteiras, caindo aos pedaços com os seus piolhos disfarçados de gente, ou gente disfarçada de gente com medo de ser humano o suficiente para assumir sua condição existencial, e existir e chegar ao amanhã e... continuar tecendo a bandeira de fios translúcidos que a aranha não conseguiu terminar.
E o perdão?...
Bem, loucos ficam ofendidos com pouca coisa, quem dirá com tantos acontecimentos assim...
É verão, a tempestade chega trazendo os pernilongos famintos de líquidos, sedentos de águas vermelhas.
2008
http://www.sandraravanini.com