Delírios do Cotidiano
A garrafa de gin ficava bem ao lado de um pingüim luminoso. Eu sentado no balcão bebendo a terceira dose, olhando a garrafa e o pingüim. Olhava de um pro outro, quase idiotamente. Queria fumar, mas tinha que ir pro lado de fora do bar. Fazia frio.
A temperatura tão fria quanto o meu embotamento.
Tão fria quanto a minha solidão.
Tão fria quanto o meu estado de espírito.
Tão fria quanto o meu terceiro copo de gin.
Mas no quarto copo as coisas começavam a esquentar. Sempre. Eu sempre ficava mais ativo; o cérebro produzindo imagens com rostos, flashes de memórias intercalando com flashes de delírios etílicos. Eu sentia raiva de tudo isso. Tudo parecia contra mim, me perseguindo. Uma virulência sempre me assaltava após o quarto copo. Tinha que me controlar e me manter na linha tênue entre a violência que deveria ser mantida dentro de mim e a violência que eu poderia usar - ou não - fora de mim.
Era hora de voltar pra casa. Enfrentar o chuveiro, depois a cama e depois o despertador e depois a hostilidade de mais um dia na selva de concreto.
Paguei as bebidas, dei uma última olhada pro pingüim e saí. É sempre nessas saidas que se vê os casais abraçadinhos do outro lado da rua e se pensa na derrota diária da solidão indesejada.
Adoraria pegar a chave do carro, entrar, ligar o motor, o ar quente, o som e subir devagar a avenida, olhando os letreiros e as expressões dos boêmios andarilhos.
Fui pro ponto de ônibus e lá fiquei - aquele ponto que fica em frente à uma casa noturna. O som deplorável vindo lá de dentro, me exasperando, fazendo o gin borbulhar dentro dos meus nervos.
O ônibus chega e me salva da tortura sonora. Encosto perto de um casal que está sentado no banco imediatamente atrás do motorista. Não conversavam, cada um mergulhado no próprio mundo. Notei que mãos rolavam por debaixo dos panos. Sorri. "Eu era fácil de agradar. O problema era o resto do mundo". Bem propícia essa frase do Pulp.
A viagem desse primeiro ônibus é breve. Catedral, Teatro Municipal. Tudo, aos olhos, ganha uma certa nobreza durante a noite, no centro da cidade. Do lado de fora, ali, no cerne, é que a realidade bate forte no nariz e nos ouvidos - e se não tomar cuidado, bate no estômago e na cara.
Entro no segundo. Ônibus comprido. Dezoito metros. Uma serpente que se arrasta pela avenida que atravanca a cidade; uma serpente que engole dezenas de ratos e se exibe, desfilando por quilômetros e quilômetros de asfalto.
Na parada daquele shopping duplo, o ônibus é invadido por toda a sorte possível de cacofonias desprezíveis. Desmaio sentado. Nunca vai mudar. Odeio ter de pensar resignadamente, mas fantasiar algo melhor é inviável.
Posso mudar o patamar de algumas coisas. Evoluir, crescer. Mas são meros detalhes que significam muito para os outros e não significam nada para mim. Eu queria sim, às vezes, me tornar um robô, cheio de ideais plastificados e seguir fingindo ser feliz assim, como todos fazem.
Esse esquete não me seduz. Esse tipo de realidade é surreal. Na minha concepção. É um câncer externo, alheio à mim, que vai me corroendo aos poucos. Uma malsinação involuntária.
Sorri de novo.
Alguma coisa tinha de valer a pena. Tentar. Eu estava tentando. O que me impede de carregar uma arma e explodir meus miolos é esse algo inescrutável e fantasiosamente belo que, assim espero, me espera.
Tomei banho pensando se um filho mudaria minhas perspectivas. Uma companheira, invariavelmente, consegue transformar energias negativas em vontade de lutar. Uma pena que isso não funcionava comigo; só funcionava ao avesso. Cada decepção era como uma cavada mais funda no túmulo que por fim me enterrariam.
Minhas lágrimas se misturaram a água do chuveiro. Me enxuguei maquinalmente, coloquei o relógio pra despertar no mesmo horário de sempre, deitei, puxei o cobertor até o pescoço e fiquei olhando pro teto. Pela janela entravam as luzes dos carros que passavam na rua lá embaixo, desenhando formas bruxuleantes e efêmeras, levianas, indecentes.
Finalmente adormeci.