Zé dos caixões
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Morrer nunca foi lá essa coisa toda, mas até pra morrer tem gente que é estilosa.
Conheci um cidadão chamado Ermiterio – isso mesmo, amigo! E aqui não tem essa de ‘paroxítona terminada em ditongo deve ser acentuada’, não. O nome da criatura era assim mesmo, um hiato terminativo! Sílaba por sílaba ficaria assim: Er-mi-te-ri-o.
Como profecia materna, o nome tinha tudo a ver com seu dono porque nunca vi espécime mais raro que meu amigo Terinho que, pra alegria de todos, principalmente a dele, carregou por toda a vida a alcunha de Zé – tem nome mais brasileiro? Comigo mesmo é assim: quando não sei o nome do homem com quem falo tasco um doce ‘seu Zé’, afinadinho, que nem dá tempo de pensar; pensar pra que, moço?! Se é um homem mais velho então: – ‘Ei, seu Zé!’... Isso é bom demais!
Deveríamos mesmo era justapor o pronome com o substantivo, fundir o ‘seu’ com o ‘Zé’ e formar, registrando em cartório, inclusive, a figura do Seuzé. Já imaginou cruzar pelas ruas com um Seuzé da Silva; ou então ser conhecido no bairro onde mora por Seuzé da Tonha – isso, sim, faria de nós um povo genuíno! Não me refiro ao seu Zé da Tonha, mas ao Seuzé da Tonha, pessoa jurídica com nome e sobrenome. Percebeu a diferença, a autenticidade?
Creio que o nosso ‘seu Zé’ tem o mesmo efeito do ‘get’ na língua inglesa. Na dúvida, o get salva a pátria e tudo fica certinho.
Já que falei dos estrangeiros não ficaria elegante esquecer nossos descobridores. É bem verdade que em nossos chutes de Zé pra lá, Zé pra cá até que acertamos algumas vezes e chamamos de Zé certo José de batismo. Claro que os nossos Josés não possuem a mesma pujança dos Manuéis de Portugal. Ou seriam Manéis? Nossa Língua Portuguesa é complicada demais! Confesso que não sei diferençar entre ser um Manuel ou um Manel... Maneis, arrebenteis, irrompais – e agora sem acento, percebes o sufoco? Maneis, Manuéis ou manéis? Não quero nem saber se com as novas regras gramaticais o acento cabe ou é descabido – essa briga deixo pra você, topa?
Mas... Será que os tantos Manuéis de Portugal tem a ver com D. Manuel, o venturoso? E se tiver, de onde diabos teriam surgido nossos Josés? Seria do José de Maria? Se for assim, os Joãos (Joões?) seriam também de Maria... Adorava quando meu pai contava a historinha de Joãozinho e Maria...
Ih, mas o Zé morreu.
Já? – você deve estar se perguntando.
Já, ora bolas! Um homem com um nome desse a gente tem mesmo é que criar e matar logo. Vai que alguém lê isso, gosta da ideia e sai por aí proliferando a peste do Ermiterinho. Quero isso pra mim não, moço! Este será exemplar único, sem registro!
O Zé morreu atropelado. Estava caminhando pela rua, displicentemente, e: plaft! – sei lá se é esse o barulho que o corpo faz quando é colhido por um carro, mas o corpo do Zé fez plaft! Plaft ou pleft? Get a pergunta... Foi socorrido, mas não resistiu, chegando morto ao hospital.
O homicida prestou depoimento e foi liberado, esperando o decorrer das investigações em liberdade. Preocupado, voltou ao hospital e providenciou o caixão do Zé, que morava no interior, mas morrera na capital. O dono do veículo atropelador fez mesmo questão de pagar tudo – era o mínimo que poderia fazer naquele momento.
Puseram o féretro no carro, com o Zé dentro, e se iniciou a viagem para a cidade natal do Ermiterio. O motorista, um senhor de idade, apesar de dirigir com atenção, foi surpreendido por um quebra-carro instalado numa das entradas das cidades do itinerário. Com o impacto, a parte traseira da ambulância abriu e o caixão, com o Zé dentro, tilintou no solo, esfacelando-se. Foi pedaço de caixão pra todo lado! O povo acudiu o velhinho motorista e, depois de muito blá, blá, blá colocaram o Zé num caixão cedido pela prefeitura da cidade. O velhinho, abalado com o ocorrido, até que solicitou que outro motorista continuasse a viagem, mas houve recusa da empresa e lá se foram os dois, ele e o Zé, para a cidade natal do Ermiterio.
Lá pelas tantas, madrugada afora, o carro (a ambulância, com o Zé dentro) sobra numa curva. Dessa vez não deu pra escapar ninguém! Depois de alguns minutos esquecidos no asfalto frio, os corpos foram avistados por veículos que transitavam na via. Chamaram a Polícia. Chamaram a imprensa... Todos lamentavam a má sorte das vítimas.
Sepultaram o Zé. O motorista, o seu Zé motorista, retornou noutro carro da empresa para ser sepultado na capital.
Ih, pulei uma parte... Com o segundo acidente, o segundo caixão do Zé também ficou destruído. Por sorte, a moça da ação social conseguiu outro ‘pesadão’ pra enterrar o Ermiterio.
A família do Zé acionou a justiça e quis indenização... E agora o maior problema do seu doutor advogado é tentar explicar para o Tribunal de Contas de onde surgiram os três caixões pra enterrar um único Ermiterio que se chamava Zé.
Nijair Araújo Pinto
Crato-CE, 10 de agosto de 2010.
18h29min