Nada de memórias. Eu me disse com uma teimosia intrépida, espantada, com a qual não estou habituada a conviver. Não quero ser um retrato, a imagem me veio na hora com um troar de fúria. Porque os retratos é que são assim, cheios de memórias. E têm um tempo único, singular, feito um relógio que entre um segundo e outro, quebrou. Movimenta-se até ali, onde começa e termina o susto, a surpresa de quem olhou e viu. Abre-se um álbum, uma revista e eles estão lá, secos, carregando a vida quase inventada ou quebrados, como uma vidraça por onde passa o cheiro, mas não se vê a maçã.
 

Insisto nessa conversa muda com a submissão de quem desesperadamente pede perdão. Com prudência, para que o pedido de clemência não seja nem largo nem estreito, nem comprido, nem curto, mas na medida exata do que preciso: atravessar a ponte e chegar ao meu tempo, porque já entendi que meu querer é muito mais fraco do que esse quase invencível medo de me encontrar comigo tanto tempo depois.

Minhas lembranças são almas perigosas. Rememoro as já pacificadas e rio de um rir alarmado, decepcionado com a coragem que perdi. As lembranças de ousadias, de ímpetos desafiadores, todas tão intensamente vivas, também delas deixo fluir a loucura dos que, sozinhos, sem que ninguém saiba de que, sorriem. Mas é o mesmo riso, surpreso com a ausência de fantasias, com os encantamentos dissipados. Também as tristes, as inesperadas e incompreensíveis. As que mutilaram amores-perfeitos, aquelas que impuseram outro caminho e tantas e tantas que procuram por lágrimas que secaram, por dores que se transformaram em compreensíveis acontecimentos de vida. Consola-me apenas um fio de inércia: basta que o sono chegue e me leve, fatigada de passados, pesada de lembranças que se acostumaram com o cheiro de meus lençóis, com a água fervente do café da manhã, com o gosto da salada de rúcula.

Meu Deus, não serei meu algoz! Não me trançarei nessas teias de medo e desalento. Recuso-me a desfilar nesse presente improvisado pelo mundo enquanto brotam da vida, novas e virgens sementes. Nada de memórias, insisto. Nada de vidraças quebradas, há janelas e portas abertas e maçãs, ao alcance das mãos, para que sintamos seu cheiro e gosto.

Uma saudade basta, para que descubra em mim, meu caminho. Uma saudade, apenas, basta a esse entendimento. Eis, o que peço.
Eliana Schueler
Enviado por Eliana Schueler em 09/08/2010
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