CACHINHOS DE ÉBANO
Olhando os retratos do famoso álbum de família, como faço sempre que venho à casa de meus pais na fazenda, tento recompor pedaços de viver que se passou faz tanto tempo. O olhar passeia em todas elas e a saudade domina como o amarelo do tempo que ali se impregnou. Dessa vez, me perdi a olhar o retrato que emoldura a única lembrança de minha criancice. Cinco crianças posam ali, de frente ao alpendre do velho casarão de meus avós paternos. Naquela época ainda não éramos seis.
Depois de verificar cada rosto ali exposto (entre eles o meu) como a inspecionar se nada se perdera desde a última vez que o vira, meu olhar se prendeu à figura mais marcante daquela fotografia em preto e branco daquele álbum já tão amassado por mãos saudosas. Era a primeira da escadinha garbosa, cuja marca era os seus cabelos bem negros formando cachinhos tão perfeitos como se fossem feitos à mão. Não tinha como não se perder ali, em reflexões, naqueles anéis perfeitos e naquele olhar infantil onde uma severidade natural e meiga escondia as feições de uma criança. Eu enxergava assim aquele olhar negro e o semblante fechado que se desprendia debaixo de pálpebras de veludo: talvez se rebelara por ter que posar ali de frente a uma câmera que he exigia uma pose incompreensível para uma criança que mal completara um ano de vida. Afinal que sentido teria ficar de pé, enquanto outras pessoas instigavam-lhe um olhar ou sorriso apenas? Dela não arrancaram o sorriso; apenas o olhar fechado de quem não agradara daquela sessão. No entanto, nenhuma lágrima rolara molhando o seu belo rosto.
Segura possessivamente uma chupeta nas mãozinhas rechonchudas, como se fosse ela, naquele momento, a única âncora capaz de dar-lhe a segurança que por instantes perdera dos braços da mãe para posar para aquele retrato. Enquanto apertava a chupeta nas mãos, talvez tentasse compensar a liberdade perdida por minutos apenas, entre a escolha da pose e o clique final. Era necessário. Embora não compreendesse. Para que a posteridade que duvidasse, visse ali os belíssimos anéis negros que um dia emolduraram seu rosto de menina. Era ela, até então, a caçula daquela família.
Agora depois de tanto tempo, o olhar que me fez perder-se em um pedaço de papel onde se registrara uma imagem de criança, se levanta e se põe a procurar indícios dos cachinhos tão perfeitos e não vê senão um semblante de senhora. Uma jovem senhora a qual eles pertenceram. O mesmo semblante, eu diria, se estampa na sua maturidade tão bela quanto sua infância. Aquela severidade meiga... Hoje percebo que ela é natural nas feições que o tempo apenas se incumbiu de melhorar, embora ainda haja traços de menina em seus contornos perfeitos. Só não vejo mais os cachinhos de ébano que atravessaram fronteiras, expostas num retângulo, para ser admirada. Embora junto com os outros na escadinha garbosa, fora ela que impulsionara meu avô a levá-la para que todos vissem os cachinhos de ébano tão formosos.
Agora fico a imaginar como o destino traça nossos caminhos... O tempo é o senhor do destino e ele passa por todos nós. Não há como escapar. Somos seres mutantes. E a transformação brusca a que somos submetidos, atinge nosso físico, pontilha nossa alma, nossas crenças e nosso viver. Hoje, aquela menina já é mãe de três meninos. Entre eles dois adolescentes que já ousam sair do casulo tecido com tanta proteção. Os cachinhos de ébano tão perfeitos já não existem mais. Foram transformados ano após ano, numa mutação necessária ditada pelo ciclo da vida. Hoje, debaixo de onde antes eram perfeitos anéis, um cérebro inteligente trabalha sem cessar, descobrindo fórmulas para lidar com as transformações da vida; ou fórmulas para proteger aqueles que o seu ventre gerou, nesse ciclo santo designado apenas à mulher. É uma luta constante que só ela conhece e que foi capaz de mesclar até mesmo belos cachinhos de ébano. Precocemente.