Pacto Desfeito
Homenagem ao meu Pai
Fim de tarde. O sol descamba, preguiçoso, mergulhando na densa folhagem das árvores copadas. O magnífico clarão ouro e rubi que incendeia o poente num espetáculo maravilhoso, aos poucos desaparece, dando lugar a misteriosas sombras. A natureza, em silêncio, agradece por mais um dia de vida.
Ali, na região ribeirinha, as famílias recolhem-se em seus lares. Os trabalhadores estão de volta dos seringais, das caçadas, pescarias e lavoura.
À margem esquerda do rio Envira, está a cidade de Tefé que fora habitada por índios antes do descobrimento do Brasil. A tribo Tupebas ou Tapibás deu origem ao nome Tefé, cujo significado é “Liberdade com a natureza."
Em uma das inúmeras palafitas da pequena comunidade, moram José e sua esposa Jovita. Conheceu-a quando veio do Nordeste para trabalhar no seringal. A Amazônia está sendo o único produtor de borracha no mundo, correspondendo a 40% das exportações nacionais. Os jovens vêm para “fazer fortuna”. As atenções do rapaz voltaram-se para a jovem, descendente de mãe índia e pai estrangeiro.
José viu-a, pela primeira vez, em um barracão, durante um baile. Segundo ele, era “a moça mais bonita da festa”. Uma linda morena de olhos azuis. Ao falar dela, seus olhos brilham e o pensamento viaja àquele salão, onde seu coração bateu forte como nunca havia acontecido antes. Dessa união, já nasceram três filhos. Dentro de dois meses, o lar será abençoado com mais um bebê, para alegria e orgulho dos pais.
Perto do lugar onde moram, à margem direita do rio, uma aldeia de índios também aguarda a chegada dos que trabalham, em cada fim de tarde. O caminho que os leva à aldeia obriga-os a passar por dentro da casa de José. Às vezes, os que são mais amigos, sentam-se no chão da cozinha para conversar um pouco. Costumam trazer presentes de caças, ovos, peixes e carne de cobra já temperada, dentro de uma cuia. Para Jovita, as mulheres trazem adornos que elas próprias fabricam: lindos colares e pulseiras confeccionadas com sementes e penas coloridas.
O casal recebe as ofertas, agradece-lhes gentilmente e retribui com objetos ou favores de que necessitam. Através dessa troca de cortesia, nasce um elo de amizade entre os dois tipos de raça bastante diferentes nas características físicas, nos costumes e na linguagem, mas com um vínculo em comum: o espírito de sociedade, de solidariedade e principalmente, de amor. A comunicação é feita mais por gestos do que por palavras. A troca de linguagens é resumida, de ambas as partes, mas o suficiente para um bom relacionamento. Afinal, são todos brasileiros, filhos da mesma Pátria – mãe, com muito orgulho. E a mãe não faz diferença entre seus filhos.
Em uma dessas visitas, sob o cenário exuberante do pôr-do-sol, Coari, uma jovem índia que também espera um bebê, senta-se perto de Jovita e pergunta-lhe:
_ Quando vai nascer filho?
_ Daqui a dois meses _ responde Jovita, acariciando a barriga.
_ O meu, também.(fala, mostrando dois dedos).
Dá para perceber que sua barriga crescera bastante, pois seu corpo está quase nu, coberto somente com um fio de penas coloridas, abaixo do ventre, outro no pescoço feito colar e um lindo cocar realçando os cabelos pretos e lisos.
De repente, em tom de brincadeira, Jovita propõe à amiga:
_Vamos trocar os filhos, quando nascerem?
_ Trocar filhos?
_ Sim. Eu lhe dou o meu filho e você me dá o seu...
_ Coari dá filho para Jovita e Jovita dá filho para Coari?
_ Sim. Não quer?
_ Coari quer.
Passam-se dois meses desse breve diálogo. A notícia de que os bebês haviam nascido, espalha-se pela comunidade de Tefé e pela aldeia indígena. É o dia 04 de julho de 1917. Dois brasileirinhos do sexo masculino vêm ao mundo, respirando o oxigênio puro da clorofila amazônica.
Após banhar o filho recém-nascido nas águas do rio Envira e levantá-lo para o céu, confiando-o à proteção da natureza, Coari coloca-o em um cestinho de cipó e leva-o à casa de Jovita para fazer a troca conforme o combinado. Ao encontrar a amiga dormindo, entra, silenciosa, tira o bebê da rede em que dorme tranquilamente e põe o seu filho no lugar. Parte, em seguida, com a criança rumo à aldeia.
Ao acordar, Jovita vai pegar o bebê para alimentá-lo e percebe que não é o seu menino. Lembra-se, então, da brincadeira que propusera à amiga. Nunca pensara que Coari fosse levar a sério tamanha sandice. Completamente abalada com o que estava acontecendo, o coração traspassado de dor, chama o marido e entrega-lhe o pequeno índio: “Pegue o filho de Coari. Diga-lhe que o nosso trato não era de verdade, mas só uma brincadeira. Fale, ainda, que estou triste, sentindo falta do meu bebê, e que cada mãe deve criar o seu filho, para que ambos sejam felizes”.
Como uma flecha atirada contra a presa, José parte em direção à aldeia, em busca de seu filho e, pouco depois, não obstante a resistência da índia em não querer devolvê-lo, está de volta com a sua criança nos braços.
A felicidade paira novamente sobre o seu lar. Jovita chora de emoção ao apertar o filho contra o peito. Em agradecimento ao Santo de sua devoção, dá-lhe o nome de Francisco.
A tarde está sob os efeitos maravilhosos do pôr-do-sol. Os pássaros voltam aos seus ninhos. Os trabalhadores retornam aos lares. A paz sobrevoa a floresta espargindo o perfume das flores.
***
Obs. Essa criança, Francisco, era meu Pai.
Maria de Jesus. Fortaleza, 08 / 08 / 2010. Dia dos Pais.