Despedida

Eu não sei se um dia vou entender sua cabeça, talvez, quando eu deixar de ser o filho e virar pai, quem sabe? Ainda não da pra entender o que aconteceu, só tirar a lição de que a vida não nos pertence, ninguém é dono de nada e não leva nada dessa terra, como você que deixou tudo pra trás e eu não tenho explicação para além das lágrimas escorridas no rosto, levemente disfarçadas pelo Ray-ban. Acho que eu nunca vou chorar tudo o que tinha pra chorar. A revolta é grande, eu sempre quis saber tudo, ter respostas pra tudo, tirar vantagem, eu sou assim. Me frustra saber que pra isso, eu não tenho resposta.

Somos apenas marionetes, com livre harbítrio, e chega a hora que quem te segura, corta os fios.

Só agora que eu não tenho mais vontade de te criticar, por que sei que você sempre quis meu bem, mesmo não demonstrando nunca e com isso, eu nem lembro quando foi a última vez que te abracei.

Me perdoa.

Sei que tudo o que fez, foi pra me deixar mais forte, nunca ser covarde e fugir de uma briga, com você o negócio era encrenca,

força,

dente por dente.

E hoje sou “ O leão covarde da boca do lixo, na estrada de tijolos mais suja e cheia de bichos” Essa minha estrada ta emporcalhada mesmo. Há espinhos por toda parte.

A cruz ta pesada(...)

Diversas vezes, te desrespeitei, pra medir meu ego com o seu e, claro, hoje é o que mais se destaca em mim. Eu nunca te levei a sério, e nem você. Eu quase nunca te agradei. Notas altas, premiações, dom artístico, os meu manuscritos, nada disso tinha valor pra você, além de “status” e isso é algo que eu nunca levei em conta. Isso sempre me feriu, você sempre rasgava as ferias, mas você tinha razão, hoje eu não vivo de nada dessa merda de dom, e sou proletário como você sempre foi, como eu sempre odiei repetições. Foi também humilde, foi preguiçoso, não saia do sofá, era praticamente só seu. Sempre aumentava uma história, forjava acontecimentos – isso eu herdei de fato. Sei que sou o maior mentiroso do mundo. Queria ter herdado também, sua força de vontade, seu otimismo, sua resistência, sua compaixão e todas as habilidades domésticas, do dia-a-dia que eu sempre admirei. Quem vai trocar a resistência do chuveiro? Arrumar a porcaria da torneira da pia? Ou quaisquer outra coisa que você aprendia a consertar facilmente? Eu não sei como aguentar essa dor. A última coisa que te disse foi: “tchau, pai, tou indo pra escola”. Foi uma despedida. Porque quando eu voltei, você já não conseguia me responder. Que me arrancassem a perna,

um braço,

mas não o meu pai.

A última vez que te vi, foi quando fecharam a tampa da urna e orgulhoso eu ajudei a carregar. Você parecia bem, semblante bonito, envolto de flores, que no meu jardim sangravam. Eu não sinto mais fome, nem frio, nem dor, como mostram os meus dedos cortados por ter golpeado a parede por raiva. Já não tenho medo de mais nada. Eu sei que além do físico, você está em um lugar bem melhor do que aqui, do que restou por aqui. Fico feliz de saber que tenho amigos pra contar, pra me dar apoio, tenho sorte de ter a mãe que tenho, pra unirmos forças, as quais eu não sei de onde vou tirar, mas vou. É preciso caminhar,

correr,

o funeral do coelho branco já foi, e eu já nem sei mais onde procurar.

Acho que é começar pelas lembranças dos tempos bons de garoto que ainda continuo sendo, lembrar de você que sempre me defendia quando eu era fraco.

Quando eu não sabia andar sozinho.

Quando eu tinha medo e engolia o choro pra mostrar que era forte pra você, quando na verdade eu era um fracassado, que não sabia o que fazer.

E agora? – Engasgo de tanto chorar sua perda. Mas nada do que eu era eu sou mais. Graças a você,

graças ao grande homem que você foi,

hoje eu sei que você queria que eu me tornasse tão homem quanto você. E eu prometo que vou.

Onde você estiver,

eu juro que vou.

Eu te amo, pai.

uell
Enviado por uell em 06/08/2010
Código do texto: T2422913