Aquele que conhecerá o mar
Estou tocando Clube da Esquina no violão enquanto você entra e sai do quarto organizando sua bagagem para aquela que será tua tão esperada viagem ao mar – ah! - Que será o mar? Qual será seu verdadeiro tamanho, sua cor, é preciso medi-lo no olhar, enxergá-lo a olho nu! Com 24 anos e ainda não conhecera o mar e ainda, irônico como sempre, brincava com a situação:
- O maior que já vi, depois daquele de 21 polegadas que tem lá em casa, é o do Cinemark. Imenso aquele mar!
Ah, meu amigo, era preciso, sim, medi-lo com os próprios olhos, sair do monótono sofá, deixar as telas do cinema, e ouvi-lo no seu sussurro intraduzível. Sim, amigo, a voz do mar não tem tradução. Eu já o ouvi algumas vezes, eu já senti o mar palpitando, sussurrando sobre mim seu canto profundo, e nesses meus 24 anos incompletos posso dizer também que nunca ouvi voz igual, nenhuma se iguala, e ao mesmo tempo nenhuma voz estabelece uma comunicação tão perfeita com a nossa alma: é o "templo do eterno susto" como intuiu uma poetisa por aí.
Eis o que posso lhe afiançar meu amigo: o mar é essa espécie de céu que a gente pode conquistar com a vantagem de não precisar morrer, é talvez a nossa primeira aventura com o que imaginamos ser o paraíso! O mar faz a gente lembrar que temos dentro da gente uma alma. É uma experiência única, é como nascer de novo! E eu só queria estar aí contigo, queria conduzi-lo ao mar, os pés descalços na areia, acompanhando silenciosamente teus passos deslumbrados e teus olhos enormes de quem acaba de despertar para o mundo. Mas não vai dar, assim quis o destino ou o acaso...
Mas a essa hora da manhã, de que me adianta lamentar essas coisas? Você possivelmente já vai longe. Sim. Possivelmente nesse exato momento já vai longe cantando Dance of Days pelas rodovias, respirando com profunda reverência o vento alegre que entra pela janela do carro. Posso imaginá-lo daqui, sentado no banco traseiro, o Iran ao volante com aquele sorrisão bobo que só ele tem, a Tati deslumbrada com a paisagem, colhendo um milhão de fotografias, e a Susi, com seus olhinhos felinos e a barriga já dolorida de tanto sorrir com as doces bobagens que você conta com essa sua “lingüinha sagaz”. Ah, essas tuas divertidas bobagens que tanto cativam a gente! Só você mesmo...
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E é assim, com essa doce ternura que tanto me faz bem à alma, que eu penso em você, meu amigo. Você, o triste pardalzinho desamparado no caos finalmente solto como uma enorme ave de rapina desbravando fronteiras, não mais desamparado no caos, não mais trancado numa sala entre papéis burocráticos, mas com o pé na estrada, com uma determinação firme nos olhos, com murmúrios distantes a perseguir, daqui vejo você cortando o vento a 120 quilômetros por hora dentro de um carro alegre. Teu sentido é São Paulo – Guarujá! – a praia de Guarujá te espera! E eu me despeço de você como um Govinda que se despede de seu iluminado amigo Sidarta, pressentindo resplandecer na face do homem o Buda em flor. Despeço-me de ti sabendo que quando voltar não será exatamente o mesmo. Pois sei que é impossível a um homem, desses raros homens que ainda tem uma alma como você, passar indiferente pelo mar.
Então vá, meu amigo! Pois eu me despeço de você assim, sem lágrimas e sem lenços e sem lamúrias. Pois estou alegre, muito alegre por ti, pois sei que voltarás dessa sua breve viagem à São Paulo se não um Buda, pelo menos um Dunguinha ainda mais iluminado!
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