Folhetim
Folhetim
Alguns costumes adquiri com o tempo e a adaptação da idade, já outros foram moldados através de família, amores e trabalho, fazendo jus a Lamarck.
O hábito de ir à banca de jornal, por exemplo. No começo, na infância semi-alfabetizada, o rito diário era folhear as três primeiras páginas em busca dos quadrinhos, entre as três tiras, meus olhos fuçavam logo a ultima, minha preferida, a de um garoto sem olhos e bocas, que tinha sempre o mesmo desfecho, o de tatear a comida ou lanche do vizinho. Com tantos anos passados, hoje me questiono sobre está personagem, realmente existiu, ou fora o meu estomago vazio que criara companhia para não ter dor, e nem solitária ao grosso modo da expressão.
Logo mais na juventude, que não classifico por idade, mas sim pela existência da malicia, saboreava com o olhar as ultimas paginas dos classificados: “ MORENA SEIOS FARTOS-COMPLETA” – Este era de Ruthy, com “y” mesmo, dissera a mim, em uma das tantas visitas que a fiz ( em pensamentos) que acrescentara o “y” por ter origens dos gringos Americanos, tal como as fartas mamas herdadas. E assim a boa parte de minha juventude se estendeu, com as masturbações noturnas inspiradas nos gemidos indecifráveis de outra língua que Ruthy me presenteava com a palma de minha mão.
Perdi a juventude e virei homem, logo quando conheci Norma, das ultimas páginas dos classificados, parti para a primeira: “ EMPRESA EM EXPANSAO PROCURA”, deveriam por embaixo as verdades: mal salário, trabalho sujo, subordinado para ser humilhado e roubo de tempo.mas não era isso que se lia, a proposta prometia crescimento, Cooperatividade com a empresa, lucros altos e trabalho calmo. E eu com todas essas novidades na minha vida separei-me do habito: O jornal. Conseguia mesmo contato com ele, através de Norma, minha recém esposa, onde qual destacava na coluna social, que ficava logo ao meio do jornal, as grandes festas de gala, pompa e glamour. Luxo tão grande, que jamais este operário poderia dar.
Com alguns anos de casado, chegou um e logo em seguida dois filhos, o limite Maximo para a mesa que pouco mais que dois cabiam. Começaram as horas extras, e o jornal do dia colado no mural da indústria serviam-me de calendário para seguir a data que prosseguia, a maturidade que chegava, a bolsa de valores que oscilava, Norma que pedia e as crianças que comiam. Pouco eu podia oferecer. Nem amor, nem afeto podia dividir com as horas escassas do descanso. Algumas barbas brancas, dores nas costas e utopia vencida é que regavam meu dia-a-dia, e Norma, Norma sempre fiel a coluna social, se derretendo toda com as bodas de casamento que as amigas completavam e o jornal destacava. Prometi-lhe grande festa para a nossa de 25 anos de casado, mas ela propôs-me apenas uma foto. Uma foto no Jornal, na bendita colina, que para ela acrescentava uma “ tal de poesia” no emaranhados de noticias ruins.
Pobre Norma, tão amável e sonhadora, querendo fazer apenas, parte de um todo, fugir do fogão, do tanque, da cozinha ou da comida das crianças. Queria apenas ser vista. Através de alguns contatos na industria, consegui o telefone do fotografo q pincelava as tardes de minha esposa. Com a noticia, tratou de comer menos e emagrecer, para caber-se no vestido de nosso noivado, que não fora comida das traças graças ao sonho, e as estendidas diárias sobre a cama. Tirava-o da caixa após os afazeres, e o observava feito chave para o tesouro.
Conversei com o sujeito das fotos e expliquei toda a situação, comoveu-se com a historia e ate deixou brilhar os olhos em lagrimas, provavelmente também existe uma Norma em sua vida, e claramente, num suspiro de lamentação confirmou: “ Não sou eu, ou o editor e nem mesmo o dono do jornal que decidiria isso....”e Norma, pobre Norma ia emagrecendo, adoecendo, porem esperançosa de sair na Coluna. Ao menos Deus em uma coisa poupou-a, falecera antes da noticia sobre a foto no jornal. Morreu em silencio e longe das câmeras. Simplesmente no anonimato. Seu maior triunfo foi o nome rabiscado no Obituário, com nome de esposo e filhos juntos, letra magra e sem vida, mas com a exclusividade de ser a única morta naquele dia.
Os filhos crescidos, os dois já bem casados e com este pai esquecido, viviam no mundo que eu os coloquei, um mundo ameaçado por guerras, conclusos de tragédias e violência que eram expostos no jornal. Os de domingo vinham gordos e desajeitados. Acompanhava-os junto da pinga no bar da esquina. Poderia bem ir a igreja ao lado, aquela que prometia a cura para os flagelados, mas o vicio já era existente, não pela cachaça, mas pelo jornal, esse mais caro nas bancas do que a dose matinal.
Todos morriam. Os das fotos, os das noticias e até mesmo os que nunca estiveram no jornal (pobre Norma!). Carlos da Silva, João Pereira, Maria dos Socorros ( e as sem socorros), José Barbosa e até mesmo a Esperança dos Santos, iam para o além e vinham a mim através do obituário tornando-se amigos póstumos. Podiam me perguntar qualquer nome do defunto da semana, que eu saberia dizer “foi dos rins, do coração, assassinado ou acidente”. Cravados em meus olhos e gravados em minha memória, é assim que vivo hoje. Rodeado em minha aposentadoria com os nomes dos fantasmas que mês esperam para logo. Em breve, entre um suspiro ou outro, serei aquele sem foto. Sem historia. Sem ser manchete ou resenha de jornal. Apenas um nome: MARCO DE JESUS.