A TERCEIRA FILHA

Vieira ela depois de mim quando eu já tinha dois anos. Nascera às vésperas do Natal depois dessas esperas que se vivem minuto a minuto durante nove meses. Depois da descoberta triunfal após o primeiro mal-estar característico, a mãe preparara a chegada do novo ser que já pulsava em seu ventre. Com certeza fizera algumas peças bordadas e enfeitadas de rendinhas delicadas. Algum cueiro de flanela... Entretanto jamais preveria o dia exato do nascimento. O dia e a hora da chegada foram planejados por um Ser Supremo. O mesmo que cria a vida através desses meios biológicos esmiuçados pelos cientistas. Enfim, seguira os ciclos normais da vida.

Neste dia, a vida lá fora era a de sempre daqueles tempos. Ruas de terra molhadas pela chuva. Poucos brilhos nas poucas lojas que tinham ainda portas de madeira. Elas resumiam-se apenas nas Casas do Pedrinho, Loja são João... Poucas opções enchiam as prateleiras que certamente estavam ali desde o Natal passado. A maioria tecidos, botinas e chapéus. O comércio ainda não explorava esta data com a mesma ganância de hoje.

Nas casas, a tradição era o presépio. E nesse dia na sala grande do velho casarão de meus avós ele era exposto em todo o seu esplendor. Natal tinha o sabor expressamente religioso. Ainda havia Missa do galo à meia-noite e o sino que parecia cantar “Noite Feliz”. E ainda se acreditava em Papai Noel. Perto de alguma cama infantil havia sempre algum chinelinho que o esperava e o sono leve esperava ouvir seus passos na escuridão do quarto. O sono vencia sempre. E na maioria das vezes o chinelinho amanhecia solitário e se arrastava pelo ano seguinte esmagando a frustração de não ter ostentado em dia de Natal algum brinquedo que brilharia os olhos.

Mas aquela fora especialmente uma noite feliz. Duplamente. Por ser véspera de Natal e porque nascera a terceira filha. E enquanto o mundo lá fora comemorava a chegada do Natal, na simplicidade daquele tempo, em um quarto rústico do velho casarão de meus avós paternos, ela nascia. O rosto ainda jovem da mãe que há poucos instantes mostrara no semblante a dor do parto ostentava agora um semblante de felicidade e nos braços a terceira filha. A filha viera como presente de Natal. E nem fora preciso um chinelinho à beira da cama. Apenas dois seres biológicos e microscópicos que se fundiram e um ventre para gerá-los. E depois, apenas uma enfermeira fazendo às vezes de parteira e uma mãe que dava a luz o seu próprio presente de Natal.

Depois a terceira filha crescera e a cada véspera de Natal ganhava um novo botão de flor que desabrochava no ano seguinte. A flor tinha a forma de seu crescimento e das transformações normais do ciclo da vida. Já na adolescência tivera a forma de menina manhosa e perfeccionista. Era um caos fazer-lhe alguma roupa. Hoje percebo que esse detalhe a fez uma das melhores costureiras que já conheci. Mas antes disso tivera a forma de professora durante algum tempo. Depois quando os irmãos vieram para a cidade, ela ficou na fazenda com os pais. Estava de casamento marcado. Preparava-se para ter a forma de esposa e mãe.

Não quis seguir as mesmas trilhas que os irmãos. Essas trilhas que levam primeiro a uma ascensão profissional (se é que se pode chamar de ascensão, o pouco que conseguiram alcançar). Mas também nunca me questionei se seu destino seria representar apenas a vida doméstica e a maternidade. Contudo, algum tempo depois os irmãos, exceto um, se viram na mesma condição. Casados... Alguns filhos. E as irmãs domésticas... Embora com uma vida dupla de trabalho fora de casa. Isso me levou a acreditar nesses desígnios do destino. Mulheres foram criadas para serem mães e domésticas. E cheguei até a pensar que seria até mais sublime abraçar de vez esses desígnios do enveredar-se pelos vieses da vida em busca de sonhos.

Penso que involuntariamente esse fora o seu pensamento quando assumira a tarefa de ter marido e viver em função dele. A tarefa de ter filhos. Ser guardiã de seus filhos. Enfim, assumira o mito de mulher doméstica e perfeita. Um mito criado desde que o primeiro homem e mulher foram feitos de barro e receberam o sopro da vida, após os famosos sete dias da criação da terra narrada no Gênesis; ou talvez desde que o cosmos explodira em milhões de células que formariam a vida, numa evolução biológica defendida pelos cientistas. Acredito na primeira versão, uma vez que sou católica, embora acomodada. Mas não importa, o mito mulher é o mesmo desde então: ser mãe e doméstica. Minha irmã assumiu, então, como nenhuma outra esse mito. Uma mãe perfeita e uma companheira dentro dos princípios defendidos pela sociedade bíblica.

Teve os filhos. O primeiro deles prematuro, mas que o zelo de mãe foi capaz de superar. Abraçou a profissão de costureira que lhe rendeu muitas madrugadas, algum stress e poucas posses. O conhecimento da vida e do mundo adquiriu nas lutas cotidianas e nas muitas de suas viagens acompanhando o marido em algum pedaço deste País. Viagens que a fizera conhecer as pessoas e as diversas formas de viver. Que a fizera acreditar que a vida é assim, vivida nos seus mais diferentes momentos e até nas distâncias. E posso dizer: foi o conhecimento mais real e profundo do que aqueles ditos acadêmicos que se aprendem nos livros em uma sala cálida de um colégio durante anos.

E teve a sua sabedoria. Uma sabedoria marcada em um comprometimento total com a família. Por eles é capaz mais do que essas coisas primárias que apenas saciam a necessidade humana, que a faz ser a primeira a se levantar e a última a fechar as cortinas do dia. Por eles é capaz de doar sua vida inteira, de coração aberto, desvestido de qualquer egoísmo, só para ter o prazer de vê-los felizes. Assim, sem maiores questionamentos, habituou-se a esse desígnio. E sorriu o sol das manhãs ou enxugou as lágrimas à sombra da tarde. Secou o suor de todos os dias com esses mistérios de viver, com a sabedoria de mulher e mãe. Talvez nem compreendesse... Mas deveria seguir o destino.

E o destino a fez ser a terceira filha das quatro que passaram pelo ventre de uma mesma mulher. E ainda teve o privilégio marcado pelo destino de nascer às vésperas do Natal. Mas todas ganharam através da genética o desígnio de fêmea e ao longo de uma história, eu diria, bíblica, a principal característica de toda mulher: doméstica e mãe. Mas mais do que todas as outras irmãs ganhara o selo de mulher perfeita. E sutilmente tece a sua vida. Doméstica e materna, onde se prende e se enrosca qual uma teia.

- crônica escrita em 2005 em homenagem a minha irmã ( a terceira filha de meus pais)

Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 06/08/2010
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