Memórias da minha terra: o fabrico do vinho
Memórias da minha terra: o fabrico do vinho
Depois de um dia de vindima, comendo e cortando uvas, cantando e dancando, chegávamos em casa cansados, melados e pintados com suco das uvas. Queríamos regressar depressa para vermos as uvas serem descarregadas no lagar, onde depois os homens as pisavam com os pés.
Lagar é o local onde se pisam frutos para separar a sua parte líquida da massa sólida: como das azeitonas se extrai o azeite e como das uvas se extrai o suco para o vinho. É uma espécie de tanque, de grandes dimensões, geralmente em pedra.
Atualmente há processos mecânicos para esmagar as uvas, mas antigamente eram pisadas com os pés. Os homens, de bermudas e pés descalços, amassavam as uvas de forma ritmada mas enérgica. Cantavam cantigas que, por vezes, eram acompanhadas pelo som do realejo. Comiam e bebiam enquanto iam esmagando as uvas, até à meia noite. Depois da meia noite e até de manhã, o vinho repousa no lagar.
O meu pai ainda hoje utiliza este processo. É uma alegria para ele entrar no lagar e começar a pisar as uvas com os pés!
Comecei a pisar uvas, com o meu pai, no lagar dos meus avós, tinha eu seis ou sete aninhos.
O gosto pelo vinho e toda a sua envolvente me vem acompanhando pela vida fora desde a mais tenra idade. O vinho e a vinha sempre fizeram parte da minha vida. Durante cerca de quarenta anos vi, aprendi, participei... de todo o ritual e tradição que envolve a colheita das uvas e o fabrico do precioso néctar. Não sou especialista, mas sei apreciar uma boa safra.
Continuando... depois das uvas bem pisadas, é preciso deixar o mosto fermentar... O mosto é o suco da uva, fresco, obtido antes que se inicie o processo de fermentação.
A minha mãe gosta muito de fazer Jeropiga, uma espécie de licor que se faz com o suco das uvas ou mosto, que retira do lagar antes da fermentação do mesmo. Adiciona-lhe aguardente bagaceira (cachaça) produzida pelo meu pai, no ano anterior. Passados um ou dois meses, a jeropiga está pronta a ser consumida. Normalmente por altura do S. Martinho, dia 11 de novembro, acompanha as castanhas assadas, como é tradição dos magustos.
O pisar das uvas e a prova do vinho mosto são lembranças que associo à casa de meus avós, mas isso numa época tão longínqua que já quase se confunde com um sonho. Felizmente meu pai herdou de meu avô o gosto e a tradição pelo cultivo da vinha e produção de vinho.
O vinho é a bebida resultante da fermentação do suco ou mosto extraído de uvas, juntamente com a casca, as graínhas e o caule.
Para que o vinho fique tinto é necessário que haja maceração das cascas das uvas tintas ou pretas no mosto. A casca de uvas brancas ou claras não dão o resultado escuro: uvas brancas resultam em vinho branco.
Depois de pisadas, as uvas ficam fermentando no lagar cerca de três dias. É então que o açúcar se transforma em álcool e as cascas e caules flutuam, deixando o preciosos líquido no fundo do lagar. Só depois deste processo e atingindo a graduação alcoólica ideal (entre 12 a 13%), o vinho será filtrado e colocado em tonéis, para posteriormente ser engarrafado.
Na minha terra natal produz-se vinho maduro (branco e tinto), também algum vinho generoso (também conhecido por vinho tratado, vinho doce, vinho fino ou vinho do Porto) e ainda aguardente bagaceira. De salientar que em Portugal se produzem alguns dos melhores vinhos do mundo.
Mas, ainda muito há a fazer até que se possa provar o néctar dos néctares... (seja ele pertença Baco ou Dionísio, Romano ou Grego...)... esperemos pelo dia de S. Martinho e dos magustos das castanhas. Já dizia o ditado popular: “Por altura de S. Martinho, come as castanhas e prova o novo vinho”.
Até lá... vai-se degustando o que ainda ficou no barril, do ano anterior.
(Ana Flor do Lácio, 29/09/2009)