PROFESSORINHA

Foi assim durante muito tempo. Religiosamente assim. O trote lento e compassado de um cavalo segue pela estrada bem cortada entre os cerradões. Vez ou outra, uma pedra estala sob seus cascos firmes. Aqui e ali, uma árvore enfeita o tapete verde que se estende ora formando vastas planícies, ora formando ondulações levemente arredondadas. O cavalo parece concentrado, tomado por uma letargia, com suas crinas negras quase a roçar o cascalho. Não é um belo cavalo. Desses altos e fogosos que trotam com faceira elegância. É pequeno e frágil e se dispõe humildemente a esta tarefa diária. Parece, no entanto, gostar. Segue pela estrada, quase como autômato, embalado por uma voz que entoa canções e a qual conhece tão bem quanto aquela estrada.

Domando-lhe as rédeas, sem muita necessidade, uma mulher. Dona da voz que entoa canções. Na verdade, uma menina com ares de mulher. Seus cabelos negros e longos esvoaçam ao sabor do vento. Seus lábios se abrem a cantar. O som de seu canto se mistura ao canto dos pássaros e das cigarras, formando uma orquestra gritante e desconexa. O trote do cavalo se torna mais lento à medida que o som do canto se infiltra pelas suas orelhas, dopando-lhe o cérebro.

Adiante, perto de uma encruzilhada, uma trilha estreita se abre em meio ao capinzal. Como se tivesse plena certeza de seu gesto, o cavalo entra pela trilha íngreme. Alguns metros à frente avista-se um grotão. Parece querer bloquear a trilha com sua garganta ameaçadora. Esperta, ela dá uma volta e segue. Contudo, visto de perto, o grotão não parece ameaçador. No fundo de seu vale gigantesco, corre um filete de água límpida. Ora, silenciosamente, ora tamborilando gritinhos, saltando as pedras brancas que lhe barram a passagem. Aos poucos, o filete vai se tornando mais caudaloso até formar um pequeno córrego. Não se pode ver de onde surgiu. Parece ter brotado dos paredões bem cortados. Embaúbas crescem graciosas em meio a outras árvores, ou solitárias, aqui e ali. São bem altas e parecem querer alcançar os barrancos mais altos. A partir daí, o grotão segue lado a lado com a trilha íngreme, como se quisesse lhe mostrar o caminho.

Não demora muito, a trilha termina numa leve encosta. O telhado vermelho de uma construção se avista ao longe. As paredes brancas contrastam com o azul das janelas. Parece simples e quieta, não fosse à algazarra que algumas crianças fazem ao seu redor. Lá está a escolinha. A oficina do saber. O canto que saía dos lábios da menina cessa de repente. Um leve sorriso ocupa seu lugar. O cavalo parece acordar de sua letargia, e seu trote, agora se torna mais forte e mais decidido, obedecendo ao comando urgente de mãos delicadas. A professorinha chega para cumprir mais uma vez sua missão. A bela e sagrada missão de ensinar.

Muitas crianças vêm ao seu encontro. Nos rostinhos tímidos e queimados pelo sol, trazem o sorriso inocente de um anjo. Nas mãos, pequenas e perfeitas florzinhas que colheram no campo. Ofertam-lhe o presente tão importante! Sentem-se satisfeitas por tamanho feito. Calmamente, e carinhosamente, a professorinha, acolhe cada criança. Abre sem pressa o portão de madeira que cerca a escola e se adentram no mundo do saber.

O dia se vai, lento como o trote do cavalo. O arrastar de cadeiras se mistura ao burburinho inquieto de pequenos travessos. Ensaiando um ar severo, porém maternal, a menina de cabelos negros e longos, entoa sem pressa, a canção misteriosa de ensinar. Foi assim durante muito tempo. Religiosamente assim.

Hoje, a escolinha está abandonada. As crianças que faziam algazarra ao seu redor já cresceram, e tomaram cada um, rumos diferentes. O cavalo frágil e de trote lento já não cruza as trilhas íngremes. Ele já não existe mais. A professorinha de cabelos negros e longos, que, montada ao lombo do cavalo entoava canções, rumo à escolinha rural, mudou seu itinerário. Só não mudou a sua missão.

Hoje, a professorinha cruza ruas e avenidas. No seu trajeto rumo à escola, um vasto cerradão de concreto se estende severamente, ladeando as ruas por onde passa. Pessoas passam apressadas sem se olharem, misturadas aos carros velozes. Suas buzinas nervosas ferem os ouvidos.

Ao final da avenida que parece não ter fim, uma construção enorme cercada por muros altos aparece imponente. É a escola. Oficina do saber. A professorinha passa apressada por centenas de crianças que fazem algazarra ao seu redor. Seus olhos marcados pela dureza da vida, ainda fixam com devoção os rostinhos inocentes, mesmo que suas mãozinhas não mais lhe tragam florzinhas do campo. Os cabelos negros e longos, agora curtos, foram mesclados pela mão do tempo e emolduram o rosto sem expressão, sem abandonar, contudo, o ar severo e maternal. Já não entoa suas canções. Não há clima. De seus lábios, ouvem-se em lugar do canto, as lamúrias de uma era moderna.

Parece, contudo, resignada com tanto contraste. Porque no íntimo de uma professorinha, o mais importante é a sua missão. Não importa onde ela seja exercida, ou a idade para exercê-la. Não importa que seja numa escolinha rural, cercada de belezas naturais. Não importa que seja numa imponente escola, num bairro qualquer, de uma cidade qualquer. Não importa que o mestre seja uma menina de cabelos negros e longos, inexperiente. Não importa que seja uma jovem senhora, cuja mão do tempo ousou tocar. Com a diferença, porém, de que esta, escreveu a cartilha da sabedoria, ao longo dos muitos anos de sua bela e sagrada missão de ensinar.

- Crônica escrita em 2005 em homenagem à minha irmã mais velha( 1ª dos seis filhos de meus pais) que é educadora.

Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 05/08/2010
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