Viagem
No seletivo que vai para a cidade e pelo inédito que isso tinha, não sentei à janela. Eu sabia o porquê e o porquê era que ali tinha música tocando e quando eu tenho a música eu não preciso de mais nada, nem faço questão de ter a imagem. Ela me toca e pronto. Se não for sertanejo, nem ópera, eu já fico tocada. Não pelo pouco ou pelo muito, que respectivamente seus ritmos ocupam na calçada e na calada da rua em que moro ou por onde passo ao ir para a cidade. É só porque os considero muito chatos, ao ser um repetitivo e o outro por de mais elaborado.
Ao estar na fila filando o ar para me compor e entrar no transporte e me transportar em idéias, sei lá para onde, mas um onde que não fosse onde estava, eu não pensei no lugar que ocuparia dentro do veículo, também não matutei em me saber ali sentada olhando para dentro ou para fora.
Sei que só me desvencilhei da caneta, e do caderno que ocupava espaço fascista, de tão vazio que era, na minha bolsa preta, quando ouvi a música do Caetano, na voz dele mesmo, (e que, se assim não fosse, eu não escutava). A mesma que um dia, em uma certa hora errada me fora enviada, juntamente com uma outra, na qual já, jazinho falo.
Essa para a qual eu inventei um imediato, era cantada por um “cara” de voz grave, cujo nome não lembro e cuja letra traduzi para a minha língua pátria. E o que ela me fez perceber, depois de traduzida, merece outro parágrafo.
O fato em si, não me causou mais dano do que eu já havia me danado, levando de carona o fato, de que vinha a música e depois não vinha mais nada. A letra era repleta de intenção e gesto e me fez lembrar que já a tinha escutado. Fora na casa de uma amiga saída a beça, e que saíra de dentro da novela, que ficava dentro do televisor, que ficava no seu quarto. É difícil falar se fiquei mais estarrecida com isso ou com aquilo, (com um, ou com outro) do que com o fato de imaginar o amor da minha vida, sentado de pantufa, na melhor poltrona da sua sala, olhando capítulos imitativos da vida, com aquele olho lindo e tirando dos episódios, aquela canção bela que me alcançava tanto, para enviá-la só por enviá-la.
Tudo isso fez com que eu, do nada, ficasse pensando se ele tinha acolhido um cachorro de rua, um gato Persa, uma Margarida rasteira e faceira e do mato ou se gostava de doce de batata.
Sei lá, se por não saber ou se por ter os meus eternos medos disfarçados, não fiz nada, sabendo que ao não fazer estava fazendo o que fiz com “Os dois cadernos”, textinho inofensivo, que dizia sobre fechar-me aqui do meu lado e nunca mais dizer algo.
Foi aí, em meio a esse pensamento escorregadio e demasiado, que resolvi da forma mais resolvida que eu podia, não dizer, não ver, não sentir, mas escrever o que eu quisesse, e não o que eu ficava a me permitir ou não em horas em que o que eu mais queria era dizer.
Afinal, letra nunca matou ninguém, nem quando se junta com outra e faz ritmo de samba ou se junta com outras para formar a palavra. Essa coisa mais fonética do que estruturada.
Naquela hora da música, do corredor e das idéias, eu pensava por que será que era, que a lógica não ajuda quem de tão perdido, não faz uso da mente, que é pura expectativa, sorriso adormecido de Calmociteno e uma cor no rosto que só tem quem se sabe mais branco do que a definição dada ao branco ao ser cor somada.
Fora isso, fiquei pensando nos animais, e mais especificamente nos gatos.
É que eu havia recebido um que me ligava as músicas mencionadas. E para ser verdade por todo, naquele instante, retida de Caetano, pensei mesmo foi no gato preto e branco, bem parecido com o Gatchantchão que tenho lá no meu pátio. Acho que pensei mais na diferença que existe entre eles, do que na semelhança ou igualdade que eu buscava para fazê-los de dois, um, como quem mistura o real com o imaginário e faz com eles apenas o necessário.
Ao misturá-los, pensei que um era de verdade e o outro desenho pintado em tela. Tela colorida, movida, móvel e enquadrada.Tipo aqueles cartões de domingo,, para os quais a gente olha e ao enxergar pela metade ou pelo meio, lembra de alguém a quem não se quer ferir por inteiro. Um dia eu ainda faço um desenho e entrego um gato no lugar do gato que é pintura de tela. Depois corro para a praia e fico olhando, evidentemente mais para o mar ou para as dunas que o enfrenta, e menos para o menino bonito que por lá vejo quando tenho vontade.
Foi uma viagem de estrada e rapidinha, 40 minutos ou o nada que para mim pareceu ter passado, e por onde fiz reflexões sobre a vida que eu havia deixado de ter e a que eu deixei lá na minha ilha encantada.
Entrei no Seletivo que voltava, umas três horas após ter chegado à fila que ia e agora estava na que voltava. O motorista era o mesmo e me sorrio me vendo por lá e de um lá, que era novamente. Ida e volta. Essas coisas da vida. Era eu de novo atrapalhada no meu salto número 9 que carregava, além de mim, que já sou um baita peso, a bolsa preta, as sacolas, a carteira e as notas de dinheiro, que quase nunca me serviam para algo melhor do que fazer as minhas viagens de ida sem volta, de volta sem ida e as que me mantinham entre as duas. Não me levavam a nenhum continente existente no mapa mundi, porque sempre estava a andar, sem assim estagnar a paisagem que via.
Dos que estavam desocupados no onibuzinho, escolhi o último lugar e sentei com gostinho de fundão de sala de aula, já que escrevia esse texto. Escrevia porque achava que se tinha iniciado na ida, tinha agora que terminá-lo no regresso.
Sentando, coloquei a parnafernália ao lado, na tentativa de evitar que alguém ali sentasse. Coloquei, melhor dizendo, as coisas essas, nem tanto ao céu, nem tanto a terra. Encontrei um meio termo no espaço dos bancos e na minha consciência, ao imaginar que ao estar muito dentro do que escreveria, poderia deixar de observar algum velhinho querendo descansar, nem que fosse sobre as minhas sacolas. E assim ficava fácil, qualquer empurradinha para cá ou para lá, deixaria o banco e a minha consciência desocupados ou em ocupação. E achava mesmo que tinha o direito de tentar dificultar a concretização do fato de alguém sentar justo comigo, porque quem tem mais de um banco aleatório para ocupar poderia muito bem, por mim ser levado a optar pelo que não iria me fazer lado.
Queria, como quase sempre quero, estar só.
O que eu transportava, já rumava na direção por onde eu chegaria e de sacola esparramada, concluía que havia perdido o dentista ou o horário que marcara com ele, além de encontrar-me dona dos mesmos dois bancos onde encontrava-me depositada. E isso foi já na terceira estradinha que vai para o Cassino.
Você deve como nunca deveu, acreditar no que eu disse até agora e no que passo agora a dizer, embora nem eu possa crer no que digo. Acabou de sentar ao meu lado, um cara de jaqueta preta e isso não tem a menor importância, nem tem nada a ver com aquilo que nem eu estou acreditando. Tem a ver com o “cara” das músicas enviadas. São 16 horas e 44 minutos e uma canção sai da boca de um cantor de voz grave, aqui no som do rádio do seletivo achocalhado. O mesmo que cantava na novela do televisor da minha amiga.
Será que mais que eu e que o meu amor de página virada, vem agora o destino com essa conversa mais pagável que fiada?
O locutor falou em um tal Porter, cujo som fiquei repetindo na cabeça até chegar a tela do Youtube e encontrar ali registrado o título que eu tanto precisava lembrar: Era, “Surround me whith your love” e fazia mesmo parte da trilha sonora internacional de uma novela passada aqui no Brasil, mas sobre ela eu não quis saber nada.
Ouvi atentamente a música do Caetano mais uma vez, entre as que já ouvi e pela segunda a que canta o Porter, depois tomei um banho dos que descansam a gente e fui dormir sem pensar mais em nada.