Duas Vidas, um Destino - 6ª Vida, Reminiscências
6ª Vida – Reminiscências
"Passado, presente e futuro, três fluxos do espaço-tempo,
imutáveis em si e impossíveis de se encontrar.
Mas o que fazer quando isso não mais tiver significado
e o homem se tornar atemporal?"
A noite tempestuosa que parecia o prelúdio de uma verdadeira guerra física, psicológica e mental parecia prestes a eclodir sobre a cidade e em especial acima das cabeças de tão distintos protagonistas.
Mesmo sendo surreal de tão simétrico, a cada passo especialmente compassado da bela assassina um relâmpago rompia o firmamento iluminando o local outrora iluminado por belos fachos de luz dourada, agora contando apenas com as frágeis e parcas chamas de poucas velas que resistindo bravamente ao vento que acabara de invadir o recinto, tentam em vão guiar a visão daqueles que ali se encontram.
-Você é realmente muito determinada em alcançar seus objetivos Harumi. - pronuncia Setsuna, quebrando o gelo entre eles - Nem a polícia pôde impedí-la de nos alcançar. E quanto ao seu pai? O que houve a ele?
Por menos do que um instante, Harumi desviou o olhar como se tentasse olhar para dentro de si mesma a fim de encontrar respostas as perguntas incisivas do homem à sua frente.
-Ele... meu pai... ficou... não, eu o despistei para vir ao seu encalço.
-E por qual razão?
-Eu quero saber a verdade, se é que existe alguma, sobre mim, sobre meu pai... digo, sobre Ibuki e sobre você pois algo está estranho pra mim. Algo no que ouço e vejo não condiz com o que eu entendo por verdade.
-E como vai saber se o que eu vou lhe contar, e se, vou lhe contar, é a verdade?
-Vou acreditar. Eu sei que vou acreditar quando eu ouvir a verdade. Não sei como e nem o porquê, mas sei que vou saber reconhecer. - dizendo isso se posiciona em postura de combate estilo Wushu, as mãos levemente erguidas em frente ao tronco, perna direita à frente apoiada na ponta do pé e perna esquerda firmemente estruturada dando base ao corpo ereto - Porém, antes, vai ter que me derrotar. E nem pense em pegar leve, pois eu tentarei te matar. Se, contudo, conseguir me deter e me vencer, serei sua. Mas, ainda assim, terá que me contar e convencer-me da sua verdade.
-Tudo bem. Lutarei com você. - ao dizer isso, Setsuna é atingido no peito.
Um belo, porém, violento chute é cravado no peito de Setsuna, o qual é lançado contra o altar, que acaba todo rachado, com alguns pedaços no chão outrora limpo.
-Q-que... O que raios foi isso?!? - grita Ino, impressionado com tamanha violência que Harumi ainda mantinha oculta - Mas afinal de contas, que tipo de treinamento essa mulher fez??
Setsuna começa a se erguer, filetes de sangue que lhe saiam da boca, quando nota Harumi sair explosivamente de uma postura um tanto aberta, avançando velozmente, dando-lhe tempo apenas para virar o rosto, ao que recebe um corte que lhe atinge a lateral da face direita e o lóbulo de sua orelha.
-Cuidado Setsuna, essa mulher consegue usar o Jeet Kune Do![http://pt.wikipedia.org/wiki/Jeet_Kune_Do]
-Jet o quê?!
-Permita-me que lhe explique demônio, esse é um estilo criado por um mestre em vários estilos de luta, de nome Bruce Lee, no qual se prioriza não a beleza dos golpes, mas a velocidade e a eficácia dos mesmos. A intenção não é deixar o movimento mais belo, e sim, deixá-lo mais rápido e mais letal que qualquer outro estilo já criado. Eu não pretendia enfrentá-lo com isso, pois não achava que teria de usá-lo contra você. Achei que seria um desperdício de tempo e de esforço para com alguém que não merecia tal empenho. Mas, você conseguiu me deixar com dúvida a respeito de mim mesma e de meu pai. Então, para que eu possa descobrir a verdade, eu tenho que derrotá-lo com todas as minhas forças!! - dito isso, novamente ela abre os braços e posiciona-se para atacar. [http://www.bruceleeweb.com/imagenes/bruceleelateral.jpg]
Em seguida, tão rápido, como da primeira vez, Harumi avança com dois diretos de direita, seguidos por uma cotovelada e um golpe com as costas da mão esquerda, além de aplicar um Aptcha Oligui, seguido de um Tigô Tchagui, na perna direita concluindo com um Bandê Tchagui [http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20080320072126AAWNU1f] que Setsuna defende, mas acaba arremessado sobre os bancos do recinto.
" Ela misturou os estilos!"
Setsuna pensa, no mesmo instante em que nota Harumi saltar sobre ele atacando-o com um soco, o qual ele defende, mas quase tem o braço quebrado devido ao impacto violento que este sofre. Ao mesmo tempo, ela cai por sobre ele sentando de modo que usando de suas pernas, prende as de Setsuna, imobilizando-o, enquanto o ataca com uma seqüência absurda de rápidos ataques com ambas as mãos devastando o já ferido corpo dele que cospe sangue involuntariamente.
-Q-que... Mas o que raios vocês estão fazendo na casa de Deus?!
-Parem com essa destruição, por fav*...!!
Silêncio. O som do ar sendo rasgado por algo arremessado.
O pároco infelizmente descobre tarde demais que estava no lugar errado, na hora errada. A última visão que ele tem é a de uma bela mulher de pele alva e belos cabelos dourados arremessar-lhe um estilhaço de um dos vitrais do recinto sagrado que jazia no meio de sua testa fazendo o sangue correr por seu rosto, dando-lhe apenas tempo para contemplar a imagem Daquele que em tempos remotos deu sua vida em sacrifício antes que este venha a tombar inerte no chão do cenário de tal embate.
Ino e Kawazaki permanecem estáticos devido a cena que acabam de presenciar.
Harumi por alguma razão também se mantinha imóvel com sua mão esticada no ar.
De repente, seus instintos se reativam ao sentir movimentação repentina, porém, não consegue ser rápida o suficiente.
-UNGH!!!
Harumi titubeia após receber um forte golpe no abdômen, ao que Setsuna, aproveitando-se da situação, a abraça com o braço direito, prendendo os braços dela que estavam na frente do corpo e com a outra mão ele agarra o pescoço dela, sufocando-a.
-M-mal-di-... to... d-demô...ugh!!
-Heh! Se você tem forças pra continuar a nos chamar assim então quer dizer que ainda posso apertar mais, não é? - Harumi sente a visão turvar aos poucos devido à falta de oxigenação no cérebro, seus olhos começam a perder a chama intensa que os permeavam.
-Setsuna, seu doido, pare com isso!!! Assim você vai matá-la!! - grita Ino, que corre.
-Vocês já não tiveram o bastante!!!
-Espera Ino!... – Katsu tenta interromper
-CALE ESSA MALDITA BOCA INO!!!! - o brado de Setsuna ganha um efeito especialmente mais aterrorizante ao ecoar pela capela, fazendo Ino parar a poucos centímetros dele e Katsu ficar ainda mais paralisado do que já estava - Não se intrometa nesta luta senão eu acabo com você!!
-... gente...
-O que foi agora Katsu? - nesse instante Setsuna sente um calafrio, mas assim como Harumi, ele não consegue ser rápido o suficiente pra evitar que ela, deslocando o braço direito, tire-o de junto ao corpo, jogue-o para trás fazendo com que ele volte ao lugar, e lançando um forte golpe contra a articulação do braço que a esganava fazendo com que ele perca a força para em seguida aplicar-lhe uma cabeçada violenta que leva os dois ao chão, cada um de um lado.
-Argh!!! Que força!!! Como ela pôde manter a calma e o controle numa situação como essa!
-Mas pelo visto aquela era a última força que lhe restava, já que ela caiu inconsciente.
-Que mulher difícil de lidar!
-E afinal de contas, até quando você vai ficar parado aí Katsu?!
-Você só pode estar brincando? Que diabos são vocês?? Eu sou apenas um cientista, digo, hacker, digo, ah deixa pra lá! Eu nunca me envolvi com esse tipo de coisas nem saí me engalfinhando com qualquer um... ou uma.
-Entendo. Mas vamos, temos que acord...
-O que foi Setsuna?
-O garoto!! Ele está vol-t-tando!!
-Bem, pelo menos não estamos no meio de um problema como da outra vez. - nisso, Setsuna aponta debilmente na direção oposta a ele, ao que Ino, se vira sem acreditar no que seus olhos viam. Harumi, de pé, olhava arfante, para eles, filetes de fino sangue fluindo de seus lábios, as pernas arqueadas, sem muita força nos quadris, mas a determinação mantida no olhar, embora algo lhes parecia diferente.
-Mas, é impossível!! Ela só pode ser imortal!! Afinal, quem estaria de pé após perder o fôlego daquela maneira!
-M-... me...
-Hã?!
-... te-... me...
-O que ela está dizendo?
-MATE-ME DEMÔNIO!!! MATE-ME AGORA!!! VAMOS!!
-E então Setsuna?... Setsuna?!?
Nesse instante, o jovem garoto surge diante dos olhos incrédulos de todos ali presentes.
-Aii!! O que houve comigo? Onde eu arrumei todos esses ferimentos?? E... Ino, Katsu, vocês aqui!! Hã? Nossa!! - e eis que ele sai em disparada de encontro à Harumi que não entende o que acontecia naquele momento.
-O que aconteceu com você afinal??
-Hã?! Como assim?
-Você não se lembra de nada?
-Não. Quem te deixou assim e por que você queria que te matassem?
-É verdade. Você me venceu em uma luta justa. E, portanto, lhe ofereço minha vida. Pode me matar.
-Eu? Matar você?! E o que eu vou ganhar com isso?
-Mas, eu...
-Espera um pouco. Antes, de mais nada, deixe eu cuidar desses ferimentos. - e estendendo a mão, rasga um pedaço de sua manga e começa a passar no rosto de Harumi limpando o sangue.
-Ah!
-Err Setsuna, não é por nada não, mas acho melhor sairmos daqui o quanto antes, afinal, depois de tamanha confusão, esse lugar logo estará cheio de curiosos.
-Sim. Vamos... hã... errr... qual é mesmo o seu nome?
-Você não se lembra mesmo de nada?
-Como assim?
-Deixa pra lá. Me chamo Harumi.
-Lindo nome. Assim, como você. Heheh, Harumi... gostei!
-Ele não se lembra de nada mesmo Ino?
-Não, Katsu, é algo impressionante. Eu já havia ouvido falar em dupla personalidade, mas, nele isso chega a ser surreal. Afinal, ele não sabe da existência do outro, porém, o outro sabe de tudo o que se passa com ele.
-Realmente. E o que houve com ele pra que ficasse assim? E você, Harumi? Digo... pra onde vai levar esse corpo?
-Eu vou enterrá-lo.
-E desde quando você se tornou tão boazinha assim.
-Eu nunca fui má. Eu apenas mato aqueles que são maus. Ou pelo menos, eu acho... - dito isso uma lágrima solitária desce-lhe a face.
-Que seja então, depois nós conversamos sobre isso tudo. Primeiro vamos arrumar um lugar decente para ficar essa noite e algo para comermos.
-Eu sei de um lugar onde podemos ficar, afinal é praticamente uma cidade desabitada.
-Hã?! E onde fica??
-Fica na parte baixa dos arredores da cidade. O local foi tomado pela água, parece até Veneza. No entanto, lá, a água invadiu até mesmo as casas, e apenas alguns cômodos mais altos estão acima da superfície aquática.
-Por sinal, evitem entrar n'água, pois ela é proveniente de fontes termais, porém está contaminada com dióxido de enxofre [http://pt.wikipedia.org/wiki/Di%C3%B3xido_de_enxofre], que mesmo em mínimas quantidades, ainda assim é capaz de lhe matar em poucos minutos.
-E com mil diabos, por qual motivo nós iríamos nos refugiar num lugar inóspito como esse?
-Para termos mais reclusão a fim de recompor nossas forças, sem possíveis "intervenções".
-Sei.
..............
A noite vai caindo, e o céu se turvando em tons acinzentados, prelúdio de uma noite com neve, conforme eles vão se afastando do centro da cidade. A paisagem vai se tornando mais natural e menos estrutural.
A única lembrança que não os abandona é o asfalto que permanece em bom estado devido ao pouco fluxo de veículos.
O único que trafegava naquela estrada era um Hyundai Tiburon negro [http://cars.88000.org/wallpapers/45/Hyundai_Tiburon_V6_SE_2005%2C_Sunset_Widescreen.jpg], o qual voava na pista, Ino pisando bem no acelerador arrancava mais de 130 mph a partir da bela e ostensiva potência de 170 cavalos, aonde iam ele e Katsu na frente e Harumi no banco de trás com um dorminhoco Setsuna ao seu colo após comer uns bons sanduíches murmurava coisas sem nexo ao que todos riam dele.
-Hahahahah!!! Nem parece aquele cara marrento que traz tanta violência ao seu redor!!!
-É mesmo!!!
-Por sinal ele parece muito bem acomodado ao seu colo Harumi. - quase ao mesmo tempo o rosto alvo da beldade torna-se rubro, tal pimentão.
-Será que ele estaria tendo sonhos com balas e doces? Hahaha...!!!!
-Deixa ele voltar a outra forma e aí eu quero ver você falar isso pra ele, Ino!
-Que isso, amigão! Nem parece que foi ontem que te livrei da busca da alfândega por causa de suas pesquisas.
-Hahahah...
Porém, na mente de Setsuna...
...............
Silêncio
...............
E uma escuridão infindável circundam o jovem Setsuna. Nem o fundo do Mar Morto teria uma densidade de negrume tão forte, no entanto algo não lhe parece certo.
-Onde estou? E por que está tudo tão escuro?
-Estamos dentro de sua mente, meu jovem hospedeiro. - diz uma voz forte e nítida, embora numa tonalidade mais forte, esta se assemelhava e muito à sua própria.
-Quem está aí? Como assim, na minha mente??
-Ainda não entendeu, não é? Você está neste exato instante, dormindo feito um bebê no colo da Harumi, a mesma mulher que tentou nos matar, mas que ainda não sabemos bem ao certo resolveu nos dar uma chance de nos entendermos com ela.
-Mas quem é você?
-Ainda não percebeu? Eu sou você, Setsuna. Eu sou Setsuna! - dito isso, Setsuna surge em meio às trevas se aproximando dele.
-Mas isso... é impossível!!
-Não, não é. Eu sou outro Setsuna que viveu séculos atrás e após morrer, voltei à vida reencarnando em seu corpo, no entanto, algo aconteceu que você já nasceu com alma própria e por essa razão acabamos formando um corpo com duas almas.
-Mas...
-Pode ser difícil pra você admitir, mas por várias vezes recentemente devem ter havido ocasiões em que você perdeu ou sequer lembra-se do que houve ou como chegou a determinados lugares. Era eu acordando, e agindo em seu corpo. E não se esqueça dos seus sonhos com eras passadas em que você me via lutando, mas não fazia idéia do que se tratava.
Por instantes, Setsuna pára e lembra-se das ocasiões. E num dado momento, sua face muda, adquirindo confiança e decisão.
-É verdade. Mas tem algo que ainda não entendo. Por que só agora isso vem acontecendo?
-Eu ainda não sei. Mas só o que percebi foi que consegui retornar exatamente quando você perdeu a consciência. No entanto, da última vez que isso ocorreu, eu invadi seu corpo mesmo você estando acordado. Acho estranho, mas imagino que isso tenha ocorrido pelo fato de nós dois termos unido nossas vontades momentaneamente.
-Correto, meus caros.
Uma voz austera e feminina quebra o momento pessoal de ambos. Uma sensação cálida de perseverança, junto a outras sensações mistas invade os dois como uma torrente que penetra o interior da mais sólida rocha.
-Quem é você? - perguntam em uníssono
-No momento, não lhes é necessário conhecer-me embora eu já os conheça, sobretudo você, caro espadachim.
-Então o que você quer conosco?
-Quero falar-lhes que antes que possam se entender deveriam fazer com que aqueles que os seguem e acompanham, os compreendam e conheçam quem são e de onde vieram, afinal, vocês estão juntos nisso, lembram?
-E o que quer que façamos?
-Digam a eles o que eles querem saber. O resto lhes direi na hora adequada. - ao dizer essas palavras a estranha mulher começa a sumir e a escuridão se intensifica a ponto de cobrí-los...
-Ah!
-Acordou? - Setsuna acorda suando e depara-se com o rosto de Harumi olhando para ele, enquanto com as mãos, limpa o suor que lhe escorre a face.
-Resolvemos contar tudo.
-Como?!
-Eu e Setsuna vamos contar tudo a vocês. - a expressão de espanto e descrença surge no rosto de todos e piora ao verem o reflexo do outro Setsuna surgir por sobre o corpo do jovem garoto.
-Mas... o que está acontecendo aqui?!? - Ino quase bate o carro após o choque.
-Está tentando matar a todos nós??
-Tenho que cumprir minha parte no acordo com ela e de certo modo com vocês. Vou contar-lhes o que houve entre eu e Ibuki.
.............Para retornarmos até os acontecimentos entre Ibuki e Setsuna, vamos remeter à época em que eles se conheceram. Relatarei os fatos em 3ª pessoa.............
300 anos antes
Setsuna era um jovem espadachim que treinava arduamente no cume de uma montanha alva devido à neve proeminente da estação do ano. Trajava uma Hakama [http://pt.wikipedia.org/wiki/Hakama] cinza, com manchas escuras de sangue já coagulado devido prováveis ferimentos de treinamento. Calçava um par de Zôri [http://www.nippobrasil.com.br/2.semanal.culturatradicional/351.shtml] gastas.
A rocha na qual Setsuna se encontrava, mantinha-se limpa e sem neve ao contrário da natureza ao seu redor, porém, era o pior lugar naquela montanha para se ficar, afinal, a água que jorrava da cascata de quase dois mil metros de altura se chocava em sua base, tornando impossível alguém chegar aonde ele se encontrava no momento. O sangue gotejava de suas mãos sofridas do árduo treinamento com aquele shinai [http://www.evl.uic.edu/spiff/KendoBlog/images/Shinaiparts.jpg] que normalmente não passava de uma leve espada de bambu oco amarrada com pequenas cordas, porém, a que se encontrava em posse de tão maculadas mãos continha em seu interior pedras de calcário além de sua empunhadura, chamada Tsuka, ser feita em aço forjado, sem contar, é claro, o fato de que naquele local em específico, a água se tornava um "peso" a mais ao ser absorvida pelo bambu.
Após muitas possíveis horas de treinamento naquele local, Setsuna, vencido pelo cansaço, foi ao chão frio e úmido daquela rocha, quando uma voz lhe soou aos ouvidos, reanimando seu corpo inerte e exaurido de forças:
-Heh! Já acabou Setsuna!! Mal o sol está alcançando o mais alto ponto da esfera celeste e você já se encontra aí descansando. Como os jovens de hoje se tornaram fracos. É só deixá-los sem comida por umas poucas horas que já abandonam toda a força que possuíam antes!
-Como assim, algumas horas?! Eu estou aqui ao relento, treinando sem parar desde o poente solar de ontem, sem falar que já havia passado a primeira metade do dia na base desta rocha sob a pressão tórrida da água que cai no fundo deste vale. E desde o início, eu não pus um só grão de arroz na boca, minha língua só não está seca e desidratada devido à cascata que me cobre, e minhas mãos já não mais suportam a dor de serem flageladas!! Por que mestre? E pra quê tudo isso?? Eu não agüento mais!
-Olhe pra mim quando fala comigo, jovem imprudente!! Ou por acaso já se acha sábio e forte o bastante para me deter?
Mal terminara de dizer essas palavras, o mestre se vê sendo atacado por seu pupilo.
Setsuna se encontrava agachado e seu mestre, a apenas 3 passos de distância, ambos na rocha lisa e escorregadia, onde seu mentor tinha às costas a força das águas descendentes a apenas alguns parcos passos. Não havia fuga. A shinai de Setsuna corta o ar assim como algumas gotículas de água que caíam desordenadamente e parte rumo ao rosto alvo de seu mestre, quando repentinamente tem seu caminho interrompido bruscamente.
-M... mas isso é... i-imp...
-Impossível, Setsuna? - a voz era serena, mas vazia como se sugasse toda vida do ambiente e toda força de vontade de Setsuna que via sua espada parada por apenas um dedo da mão dele, que rachou a shinai naquele ponto.
-Eu apenas usei de força canalizada. Já lhe ensinei isso, além do que sua shinai é demasiado pesada para ganhar tamanha velocidade necessária pra me atingir. - dito isso, ele com um gesto circular, girou a espada e lançou Setsuna para o ar, apontando-lhe a shinai ao que ele apoiou com a mão esquerda na ponta dos dedos e antes de fazer menção de cair, notou que a rocha se encontrava cheia de pedras pontiagudas voltadas para cima.
-Mas o que é isso, mestre?!
-Seu último desafio do dia. Sobreviva a isso e poderá descer daqui para comer. - ao dizer essas palavras, ele largou a espada de bambu.
-Você ainda tem energias no corpo, apenas não as canalizou! Lembre-se! O ser humano, quando acha que chegou ao seu limite, é por que ainda não sentiu necessidade de usar sua força interna, a verdadeira força, que só surge muitas vezes quando estamos prestes a morrer.
..............
Alguns meses depois, ainda vivo, Setsuna chegava à morada de seu mestre, uma pequena cabana feita de palha e madeira velha e úmida por fora, por dentro apenas uma rede e restos de crânios de animais usados como alimento, organizados cuidadosamente em respeito àqueles que serviram para lhes dar subsistência, além de uma rede e uma pedra para amolar suas espadas.
Mais ao canto, ele o viu. Trajava um kimono comum, porém, belo de um azul sutil como a neve.
Uma parte de tecido imitando um casaco ou sobretudo levemente esverdeado, com linhas à margem que adornavam sua veste rasgada nas mangas e bainha não se sabe se pelo uso, tempo, ou por ele mesmo. Os cabelos alvos com tons de azul eram jogados para o ar com apenas uma pequena mecha solitária que lhe caia a face ondulando na frente de seus olhos aguçados e negros.
Mais o que mais impressionava nele eram suas duas katanas cruzadas em suas costas na forma de X, porém, estranhamente com suas empunhaduras viradas para baixo.
-Está indo embora.
-Sim, mestre.
-E por qual razão você veio até aqui? Por acaso, não ficou sentimental a ponto de querer carinho de outro homem, ficou?
-??? Não mestre!!
-Então?
-Vim apenas lhe perguntar uma coisa que tem me incomodado há um bom tempo. O senhor nunca me ensinou nenhuma técnica ou golpe, sequer postura de luta me ensinou. Como posso saber se devo me considerar apto a seguir pelo mundo afora e enfrentar as lutas que vierem a se interpor em meu caminho??
-Setsuna, Setsuna... você lembra de quando me viu lutar pela 1ª vez??
-Sim mestre.
-Então me diga, quantas e quais técnicas você, meu tolo pupilo, me viu executar com essas mãos?
.................
-Diga Setsuna.
-Nenhuma senhor.
-Então como espera aprender algo de alguém sem que tenha visto esse mesmo alguém demonstrá-lo ante seus olhos. A verdadeira habilidade na espada, não consiste em floreios e técnicas complexas e belos movimentos, disso se encarregam as danças. A arte de matar consiste única e simplesmente em saber ser ágil, sutil, preciso e letal para que seu inimigo não tenha a chance de mostrar o que sabe. Uma luta entre espadas é uma luta onde ou você mata ou você morre. Não existe mais nada a se dizer. Todo treinamento que você teve foi para prepará-lo fisicamente e espiritualmente para o que for enfrentar. E por fim, o meu primeiro e último ensinamento a você é: VIVA! Viva e lute pela sua vida até o seu último suspiro de existência abandonar sua forma carnal!! E agora vá. Siga seu caminho, pois estou cansado.
Então, Setsuna ia se virando pra partir, quando se deteve e retornou a falar:
-Mestre, antes que eu me vá, gostaria de esclarecer uma coisa.
-Diga.
-Afinal, o senhor me criou, me treinou, me alimentou e me preparou para a vida lá fora. Mas desde que nos encontramos pela primeira vez, o senhor não me disse seu nome.
-Eu não tenho mais um nome.
-Como?!?
-Pelo menos, eu não me lembro quanto tempo faz desde que abandonei o convívio social e nem lembro quando foi a última vez em que ouvi meu nome ser pronunciado, afinal, eu já era pra estar morto.
-Porquê? O que o senhor fez?
-Nada, Setsuna. Apenas deixe-me em paz.
-Certo. Só mais uma coisa.
-Sim?
-Eu conheci uma pessoa. O nome dele é Ibuki e ele também disse ter terminado seu treinamento recentemente. - dito isso, a figura de um homem com seus prováveis 20 anos de idade surgiu. O cabelo branco acinzentado cobria-lhe parte da face, deixando à mostra apenas um de seus olhos rubros. Um manto negro ocultava seu corpo, porém, deixava visível o cabo ensangüentado de uma espada.
O olhar do mestre se aguçou tal qual os de um felino ao ver a figura de Ibuki, porém, reassumiu suas feições normais.
-Prazer Ibuki.
-O prazer é todo meu, mestre. - por um ínfimo instante, Setsuna sente como se a temperatura no local caísse bruscamente mesmo para os padrões da montanha onde se encontravam.
Ao dizerem essas palavras, eles se viram para partir:
-Setsuna.
-Sim mestre. - Setsuna se vira devido à última manifestação de seu mestre, esperando ouvir algo de suma importância.
-... nada. Apenas cuide-se. E lembre-se: sua intuição pode ser sua maior aliada em momentos de dúvida. Agora vá.
-Obrigado mestre, e... adeus. - ao dizer essas palavras, Setsuna parte junto ao seu mais novo amigo.
-Cuide-se garoto. - ao balbuciar suas últimas palavras o mestre sente o sangue esvair com sua vida pela boca e pelo abdômen onde jazia uma katana cravada até o cabo.
-Adeus, discípulo tolo. - dito isso, uma única e sorrateira lágrima cai de sua face.