A PROPÓSITO DA SALA...

A propósito da sala... Nem sei ao certo o que me levou a rabiscar essas palavras. Só sei que era sábado e estava parada à porta da cozinha que dá para a sala olhando o resultado de minha faxina. Dezesseis horas talvez... No ar, o cheiro de café fresco que acabara de passar. Esses cafés da tarde, ralos que mais parecem chá. Com cuidado, para não sujar o piso, esfacelo entre os lábios um pedaço de pão. Pão... Sempre pão com manteiga. Os pés ainda descalços sentindo o contato do piso frio. Nunca gostei de ficar descalça. Mas ainda há pouco lavei meus chinelos. Os cabelos em desalinho. Mais da metade deles num rabo-de-cavalo e o restante caindo no rosto, cujo semblante sustentava o olhar vago. Era esse olhar vago e quase atravessador que mirava os quatro pólos daquela sala. E nem sabia por quê. Talvez porque tivesse me esmerado mais na sua organização.

Por um instante pensei que realmente gostava daquela sala apesar de não ser exclusivamente nossa. Não temos casa própria, um dos sonhos que sempre acalentei. Depois decidi não mais sonhar. Hoje moramos de aluguel, mas tentamos dar um toque de nós a cada canto da casa onde moramos. E é exatamente nessa sala onde se aflora todos os nossos caracteres (meus e de meu marido). Ela é como uma alma aberta. Exposta. E penso que não deve ser pelo fato de que uma grande porta se abre para a varanda e visualiza todo um panorama exuberante. Se é que pode se chamar de exuberante uma oficina cheia de máquinas e caminhões velhos à espera de serviço mecânico.

Mas ainda sobra uma visão parcial da cidade. Um bairro quase na linha do horizonte... Se fosse em cidade grande diriam que era uma favela. Mas ainda assim é uma bela vista porque vem emoldurada pelo azul do céu e um pedaço de verde que he circunda as formas. E ainda tem vento afoito que entra sempre por aqui. Às vezes na forma de uma leve brisa nesses dias de outono. Outras vezes mais forte, em dias de chuva e já me derrubara o vaso de flores da mesa. Agora que já é outono outra vez, sinto-o cada vez mais inquieto como se ardesse nesse desejo de varrer folhas secas.

Realmente não posso negar que gosto desta sala, embora eu mesma fique pouco tempo aqui. Para mim ela é apenas o ponto de acesso aos outros cômodos e onde se realiza esse vaivém rotineiro. Mas foi exatamente aqui onde distribuímos um pouco de nós (eu e meu marido). Talvez devido a essa sensação de alma aberta. Ele lhe deu sua presença quase constante, e eu, as minhas tentativas de decorá-la e essas idas e vindas que me fazem circular em todos os seus pontos.

Meu olhar vago se detém nas paredes brancas. Elas são como uma proteção do mundo lá fora. Eu já não disse isso em algumas de minhas escritas? Estranho pensar que nossas vidas privadas estão protegidas por uma parede de tijolos e concretos armados ainda que pintados nas cores da paz e apesar de sustentar alguns traços de mim. Como é o caso dos três quadros marcados em tapeçaria que enfeitam as paredes. Dois deles, eu fiz antes de me casar e distribuí pontos de tapeçaria retratando traços urbanos e da natureza em cores não muito naturais. Mas que importa a cor perto da realidade se até Van Gogh abusara de alguns tipos e cores estranhas em suas obras?

O mais natural é o quarto quadro que traz uma gravura com a imagem de Cristo e cuja moldura meu marido fez riscando entalhes na madeira. Um resultado surpreendente. Depois ainda tem o pequeno quadro que traz a gravura de um anjo sobre um cisne num lago de um azul-turquesa. Ao seu lado, vários cisnes pequenos carregando anjinhos. Este foi presente de meu marido quando éramos apenas namorados. Até nessa miniatura de quadro há traços de mim. Não que eu tivesse a pretensão de ser um anjo. Mas simplesmente pelo fato de sempre ter acreditado em Anjos da Guarda e sempre admirado a elegância dos cisnes. E depois sempre flutuei ao sabor de sonhos e pensamentos, como agora que me perco procurando nossas sombras em todos os recantos dessa sala.

E as encontro no estandarte já encardido que trás o emblema do Flamengo, time de futebol carioca que meu marido adotou, apesar de ser mineiro. Eu mesma o adotei aos onze anos de idade quando assisti pela televisão uma partida que ganhara com cinco gols de diferença. Realmente faz muito tempo. Hoje o time apenas se afunda em fracassos. Mas nem assim o banimos de nossa preferência, uma das afinidades entre meu marido e eu. Sobre o estandarte há ainda um porta-chaveiros também com emblema do Flamengo dando uma sensação de torcedores doentios. O que se engana apesar de parecer o contrário. Ele é apenas um time do coração. Sabe esses amores calmos que se amam apenas em silêncio? Pois é assim. Por ele não se briga, apenas se sente. Ou se sofre calado.

Também consigo enxergar nossas sombras no aparador meia-lua em estilo antigo. Mais do meu marido que de mim. Afinal ele o fez. Eu apenas distribuí sobre ele os enfeites que quase lhe cobre a nudez da madeira envelhecida. Lembro-me quando meu marido o trouxe junto com o espelho oval e aproveitamos um pequeno espaço junto à parede entre duas portas. Logo acima dele, na parede branca, penduramos o espelho oval onde tantas vezes lancei meus olhares nessas passagens necessárias que faço diante dele. Sabe esses olhares de esguelha que se olham quando se passa defronte? Mas muitas vezes parei ali e me analisei mais de perto. Meu marido fez o aparador e o espelho oval em uma época que trabalhava como marceneiro numa pequena fábrica de móveis antigos. Era quase uma marcenaria de fundo de quintal, mas que nos rendiam dois salários a mais e uma vida mais fecunda que os dias de hoje.

Algum tempo depois me deu de presente o vaso de flores cor-de-framboesa e lilás com o único dinheiro que ganhou no conserto de um violão. Presenteou-me com as flores e quatro taças para sorvete em um quase dia de Natal. Nessa época ele já fazia alguns bicos com algumas aulas e consertos de violão. As flores, eu coloquei sobre o aparador, ao lado da imagem em louça branca do Cristo Redentor e do relógio que simboliza um presépio com um anjinho fazendo as vezes de pêndulo. O compramos em uma de nossas viagens à cidade onde mora sua irmã há setecentos e cinqüenta quilômetros de onde moramos. Ele mesmo escolheu o relógio e o trouxe com o cuidado de uma peça rara.

A mesa de centro foi herança de nossos compadres que ao mudarem a deixaram para trás quase em ruínas. Ficamos com ela e mais cinco cadeiras. Meu marido que é habilidoso em trabalhar com madeira a restaurou e fez dela um dos móveis mais bonitos da sala. Seu ar quase feudal deu certo requinte à sala e emprestou sua beleza a esse espaço que tento embelezar a custa de alguns artifícios. Sobre a madeira escura que quase se confunde com o mogno, coloquei um centro de crochê amarelo, feito trabalhosamente quando ainda era solteira e preparava sonhadora meu enxoval de casamento. O vaso de rosas artificiais vermelhas dá o toque final a ela, embora contraste com a cor do crochê que se esparrama em seu dorso.

Na parede maior fica a estante e todos os apetrechos de som de meu marido, além de alguns pequenos enfeites que ganhei de minha madrinha de crisma e minha cunhada (únicos traços de mim nesse recanto). Ali os traços de meu marido são mais fortes a começar pelos três porta-retratos que trazem a sua foto. A mesma foto em tamanhos diferentes. Sempre se dá a impressão de quer ser bem notado. Alguma vez já disse que ele é narcisista? Um sentimento que combina com seu nome, embora eu não veja coincidência nesses detalhes.

Depois tem a taça de shopp em louça, herança de um festival de shopp em sua solteirice. Na verdade eram duas. Falta-lhe a companheira. Um dos motivos de uma polêmica que jamais se chegou a um consenso. Meu marido diz que eu quebrei a outra, embora não me lembre. Ao lado da taça de shopp coloquei um copo com emblema do Flamengo (seu eu time do coração) que eu lhe comprei. O troféu em dourado e preto foi o prêmio do primeiro lugar em um festival de música sertaneja em uma festa de roça. Meu marido acompanhara uma dupla de cantadores, que pouco tempo depois se tornaram os vocalistas da Banda Fascyniu’s que criara cheio de sonhos e onde ele era o baixista e o organizador. Foi a época mais dourada de sua vida, mas que passara como esse mesmo vento de outono. Só ficaram as saudades e a memória que ele certamente relembra todas as tardes, enquanto fere solitário, as cordas de seu contrabaixo.

Ao lado da estante um porta-cds em forma de contrabaixo feito em madeira por meu marido retrata bem a sua paixão por esse universo musical. Ali se encontra quase todos os estilos musicais. Desde Jimmy Hendrix, Demônios da Garoa... E todos os sertanejos que estouram nas paradas de sucessos. E é bem de frente a esse quase estúdio onde reina o mundo de meu marido. Onde fizera todas as suas trinta e três letras de músicas e onde todas as tardes fere as cordas de seu contrabaixo, perdido nos sonhos que penso conhecer. É um espaço quase privado e do qual me aproximo apenas para tirar o pó ou desligar o som.

Perto da grande porta de vidro que dá para a varanda e de onde se tem uma vista parcial da cidade, coloquei alguns vasos de plantas. Um comigo-ninguém-pode que muitas vezes surpreendi com os galhos estendidos como se procurasse a porta (hoje penso que se acostumou à falta de sol e segue ereto como se procurasse algo nas alturas). Às vezes penso que crescera além do limite. Talvez à procura desse sol... E ainda tem o antúrio e também outra folhagem a qual não conheço o nome e que se dão bem aqui dentro. O resultado ficou muito bom. Uma mistura de natureza e o artificialismo existente nos vasos de flores. Não sei se combina. Mas que importa? O convencionalismo às vezes cansa... Há em tudo um toque de nós, embora haja mais o toque de meu marido que fez ou restaurou toda a mobília. Eu apenas quis dar o toque final. Essas coisas de decoração. Mas não sou decoradora e nem somos adeptos a luxos. Entretanto, tudo aqui tem a simplicidade que a classe baixa conhece tão bem.

Realmente gosto dessa sala. Talvez até mais do que o refúgio onde muitas vezes me entreguei às letras. Mas agora me lembro que aqui mesmo nesta sala eu escrevi a crônica da professorinha, da tulipa africana, dos sonhos de meu poeta sonhador... Inúmeras vezes, aqui mesmo nesta sala, fiz e refiz os orçamentos de minha vida doméstica. Aqui mesmo, muitas vezes eu e meu marido discutimos nossas diferenças e tentamos de todas as formas combinarem nossas vozes num duo parecido com Cascatinha & Inhana. A única música que conseguimos cantar com perfeição foi “Colcha de Retalhos”. Não consegui lhe dar mais que essa alegria. Acho que minha voz se esconde sempre dentro de falsetes musicais. Pelo menos é isso que ele sempre me diz. Penso que é porque tenho medo de seu perfeccionismo. E sempre preferi dançar enquanto ele acompanhava com o contrabaixo, as músicas no aparelho de som. Dancei inclusive a dança do retorno de mim, cercado por estas paredes brancas e no mesmo dia a transformei em crônica.

Essa sala me envolve. Muitas vezes me vi parada na porta como agora e admirando todos os seus cantos... Hoje me vi em cada canto dela já com meus quarenta e poucos anos e ainda a sonhar, embora saiba que a essa altura da vida os sonhos vão ficando cada vez mais distantes. Nesse tempo se lê mais a alma e sonha-se bem pouco. E se enche mais de artifícios para encobrir as diferenças do tempo. De repente me vi descobrindo artifícios para mim e para essa sala, fazendo planos de uma mudança aqui, outra ali... Hoje penso que ela tem muito de mim, embora eu mesma já não tenha todos os meus traços.

Foi então que caminhei até o espelho oval e me vi refletida ali numa imagem tão vaga quanto o olhar que há instantes atravessara minuciosamente os detalhes daquela sala. Percebi que muito de mim foi embora quando deixei de sonhar tantos sonhos. E nem meus cabelos são a cor natural. E os sonhos? Alguns, eu desisti de sonhá-los. Entre eles, o da nossa casa própria...

Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 03/08/2010
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