CRÔNICA #012 - REMINISCÊNCIAS

Uma das coisas mais gostosas que eu gosto de fazer é, sem dúvida, escarafunchar o meu baú de memórias e viajar nelas, como se as curtisse novamente.

Como bom nordestino que sou, não poderia deixar de apreciar o período chuvoso. Ao soar os primeiros trovões, os lavradores vibram em suas entranhas com exuberante alegria, à chegada do inverno. Na verdade, são as chuvas de verão, mas é assim que nós chamamos, mesmo. Logo, ao cair da primeira chuva, acordamos cedinho, a patroa já tem preparado o café que bebemos às pressas para sairmos quase em disparada, rumo ao roçado, previamente preparados, coivaras queimadas, terras aradas, tudo limpo e pronto para iniciarmos a plantação. O farnel está pronto, com carne seca assada, farinha, rapadura cortada, amendoim pilado e uma cabaça com água até o gogó. Pinga, nem pensar! O 'figueredo' agradece. Colocamos tudo num bisaco, e passamos o cabo da enxada pelas alças de corda deste e da cabaça, apoiados no ombro esquerdo, saímos todos, a caminho da roça. Saímos a passos firmes e ritmados, cantando canções de amor ou que retratam o viver do sertanejo.

Chegando ao roçado, nos distribuímos em duplas. O homem à frente, vai abrindo as covas a cada golpe de sua enxada, passo a passo, no sentido transversal do terreno. A mulher o segue, retirando as sementes de seus embornais, colocando milho e feijão alternadamente, fechando as covas com os pés, ao passar.

Lembro-me ainda, das noite de chuva forte a revelar goteiras por todo o telhado. Minha mãe colocando toda sua bateria de panelas de ágata e alumínio. Eu me divertia à beça com o estrondear dos trovões ao longe que mais pareciam o rufar de uma bateria de tambores nos desfiles de 7 de setembro a tocar simultaneamente com todo o vigor. O mais gostoso era ouvir aquele gotejar sonoro em diversos matizes, a princípio lento e descompassado. Mas à medida que a chuva aumentava, o ritmo das goteiras entrava em síncrona harmonia como se fosse uma melodia exótica, voltando a ralentar até extinguir-se totalmente ao parar da chuva.

Rebuscando essas memória, em janeiro de 2005, veio-me então a inspiração de compor uma peça em andamento 2/4, num estilo 'ragtime' para piano, flautas e metais, com pequena percussão, tentando retratar o gotejar sinfônico de minha infância.

Diante de uma circunstância dessas, muito se lastimam. Aquilo que se traduz em festa para os nordestinos, para os da cidade é uma lástima. O sertanejo diz: "Está bonito pra chover!". Os urbanos falam: "O dia está feio pra chover!". Depende muito do ponto de vista do observador diante de um mesmo evento. Enquanto muitos se lamentam por causa das goteiras, eu louvei a Deus por aquele inusitado espetáculo e agradeci a ELE por ter-me dado mais uma inspiração que tento traduzi nesta peça que acompanha essa leitura. Para ouvi-la, lendo este mesmo texto, basta clicar no link logo abaixo.

Que Deus abençoe grandemente a todos os que leem esta mensagem.

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Glossário:

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Bisaco: s. m. saco ou sacola.

Coivara: s. f. galhos secos de arbustos cortados e queimados quando preparam os campos para o plantio.

Embornal: s.m. saco de pano que se posta a tiracolo.

Farnel: s. m. marmita, guisado preparo para os agricultores ou boias-frias.

Figueredo: alusão ao fígado, órgão mais sofrido e degenerado em decorrência do uso de bebidas alcoólicas e outras drogas, lícitas ou não.

Matiz: s. f. cor; (p. ext. timbre, analogamente falando).

Pilado: adj. m. passado pelo pilão.

Ragtime: anglicismo; ritmo característico do velho oeste dos EUA, muito tocado nos 'saloons' dos filmes 'farwest'.

Ralentar: v. i. termo musical que denoda desaceleração.

Retratar: v. t. d. descrever, tipificar, dar a ideia de.

Tiracolo: s. m. Cordão de fios ou pano que se pendura atravessado, em diagonal do ombro ao quadril oposto, como faixa presidencial, de campeão ou miss.

Alelos Esmeraldinus
Enviado por Alelos Esmeraldinus em 03/08/2010
Reeditado em 17/11/2013
Código do texto: T2415304
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