Um Dia Lindo Para Morrer

Faz um dia lindo. O céu azul passa uma tranqüilidade inebriante. É como se fosse uma lona que impede que a maldade de asteróides perdidos e maliciosos destrua o planeta. As primeiras pipas já ganham o ar, com as suas cores ofuscantes e suas rabiolas suntuosas. Logo serão retiradas do ar, pois uma mãe com um chinelo na mão vai mandar o filho entrar pra tomar o café da manhã. Um ou dois grupos velhos conversam com aquela languidez preguiçosa que assola os mesmos assuntos de todos os dias. Um gato preto com manchas brancas que eu chamo de Tom está no lugar de sempre, sentado no seu degrauzinho favorito olhando os cachorros andando em grupos seguindo uma cadelinha no cio. Eu falo "Tooom" e ele vira o pescoço devagar, com os olhos fechados e responde "Miaau" enquanto vai abrindo os olhos. Dou os dois tapinhas habituais naquela cabeça que tem um ou dois carrapatos e ele levanta empinando o rabo pro ar vindo em direção das minhas pernas. Na porta da padaria, a viatura da polícia parada com um soldado guardando-a enquanto o(s) outro(s) se alimenta(m) no interior do estabelecimento. Na mesma calçada tem alguns velhos cachaceiros iniciando sua jornada etílica. Na curva da esquina eu olho para dentro da padaria para consultar o relógio e rapidamente vejo o dono da banca de jornal sentado no balcão bebendo café com leite e comendo coxinha enquanto lê o jornal esportivo, uma mulher com o filho à tiracolo no caixa pagando o maço de cigarros e meia dúzia de pães e o(s) outro(s) soldado(s) sorvendo calmamente um café fumegante. O Seu Zé, do outro lado da calçada, não estava executando um de seus passatempos favoritos: varrer a rua. Ele faz isso pela manhã, bem cedinho, e à noite, quando a maioria já está dormindo. Mas hoje ele está apenas pendurando algumas gaiolas no quintal. Um pássaro preto, do pescoço branco e da cabeça vermelha é o meu favorito. É o favorito do Tom também. O ar matinal penetra confortavelmente nos meus pulmões, dando um banho de bálsamo nas minhas células, revitalizando-as, fortificando-as, fazendo-as pulular de alegria. Um bem-estar me acomete cada vez que inspiro o precioso oxigênio. Na banca de jornal, folheio as notícias do dia. Política, futebol, revisões do INSS, assassinatos, enchentes, moradora que ganha na loteria, padre que rouba para pagar sexo. A charge é engraçada, descomunizando o senso-comum, ironizando a baderna diária e usual. O ônibus chega rápido e por incrível que pareça está vazio. Me sento do lado esquerdo, para ver os carros que vêm do lado oposto, ver as pessoas correndo no corredor arborizado da avenida. Nesse corredor, nas raízes gigantes de uma árvore enorme continua lá a cabeça de porco que foi usada em algum ritual macabro. O porquinho parece estar feliz ali, sem corpo, de olhos fechados, repousando no leito de raízes de um carvalho - se é que é um carvalho mesmo - ladeado de pedaços de vaso de cerâmica e de velas vermelhas. Uma mulher de rosto aliciente, bem vestida, com perfume inebriante, de corpo esbelto e esguio, se senta ao meu lado. Com a constante troca de paisagem que se passa na janela - Letreiros de oficinas, adegas, restaurantes, chaveiros, gráficas, árvores, pássaros, caixas-d'água, idosos, mulheres, crianças, cachorros, cavalos, academias, Correios, casas brancas, azuis, amarelas, laranjas, salões de manicure e agências funerárias - logo eu mergulho no sono. Mesmo moribundo, meio dormindo meio acordado, consigo sentir cada curva daquele caminho - afinal, é o mesmo caminho percorrido durante toda a vida. Eu sonho que todos os meus atuais problemas se resolvem como num passe de mágica. Eu me vejo resolvendo cada um deles com tempo, com destreza, com habilidade, como se fossem uma conta matemática de primeira série. Largando o "meio dormindo" de lado e fico completamente acordado quando a curva que antecede a parada que desço é feita com habilidade pelo condutor do veículo. Então eu desço, subo uma escada rolante e a temperatura está um pouco mais alta do que há uma hora atrás. O céu continua de um azul impecável. Na passarela que passa por cima da avenida que meu ônibus segue, consigo ver carros até onde a vista alcança. Parados, com o pára-brisa refletindo a luz do sol direto na minha retina. Pessoas apressadas indo trabalhar, indo ao médico, indo às compras. Preparadas para gastar, preparadas para ganhar, preparadas para uma boa ou para uma má notícia, preparadas para descobrir uma promoção no trabalho ou um câncer no reto. Era a vida. É a vida. Minha mesa fica ao lado de uma ampla janela do terceiro andar. Não sei se isso é bom ou ruim. Logo em frente a janela, a uns duzentos metros, quatro prédios gêmeos de dezesseis andares cada - hoje me ocorreu de contar os andares. Em um vão que separa um do outro eu posso ver o teto da Catedral da Sé e no outro vão posso ver as antenas da Avenida Paulista. Um pouco mais adiante do teto e das antenas paira uma nuvem acinzentada, meio avermelhada. Poluição. Mais perto tem o prédio azul da fábrica de chuveiros. Posso ver uma espécie de caixa d'água que parece com a casa dos Animaniacs. Alguns carros entram no estacionamento da empresa. E-mails, e-mails, e-mails, regras, regras, regras, regras, rádios, rádios, rádios, rádios. Problemas, problemas que não são meus, problemas que são dos outros, problemas que prostituo o meu tempo para resolver. Problemas que não deveriam fazer parte de mim por não serem meus me invadem e me corroem, trocam o meu bom humor pelo mau humor como se o primeiro fosse uma roupa enlameada que deve ser lavada, batida, enxaguada, enxugada para voltar nova, novamente. Meu trapézio dói, minha cabeça lateja, sinto um instinto maligno crescendo dentro de mim, meu olho arde, não consigo mais articular as palavras, fico redundante, impaciente, um bom dia que interrompe meus pensamentos por segundos gera uma fúria louca dentro de mim. Penso que preciso de remédios, de repouso; preciso quebrar alguns ossos e ficar largado por meses numa cama com uma enfermeira cuidando de mim, olhando pro teto, assistindo desenhos animados e escrevendo histórias sobre alienígenas de três tetas. Penso que preciso de um colapso nervoso, cair da cadeira babando, epiléptico, e ser carregado numa cadeira de rodas e ser despejado pra dentro de um táxi que será pago com o meu salário no final do mês. Coma, penso que preciso de um coma, ficar ali deitado, dormindo, dormindo, dormindo, a barba crescendo, o mundo se destruindo lá fora e eu deitado dormindo, dormindo, dormindo enquanto a minha ereção a cada dia que passo dormindo vai ficando mais fraca. Saio sem dizer palavra e vou até o banheiro, me tranco em uma cabine e arranco alguns fios de cabelo. Sinto que estou ficando louco. Eu vejo as paredes brancas do reservado do banheiro e me imagino numa sala acolchoada, querendo liberdade, querendo o mundo. Mas eu tenho o mundo e mesmo assim me sinto numa sala acolchoada parecida. A sala acolchoada é a minha mente, é a voz da minha mente que me deixa louco, que me enlouquece com as suas opiniões distorcidas e difusas e imaturas e insanas e ela grita onde quer que eu esteja, seja numa roda gigante, numa praia, numa sarjeta, com a cara enfiada em uma vagina ou numa mesa de oração onde agradecem por um dia vivido à mais onde tecnicamente é um dia a menos que foi vivido. Me levanto depressa pois a vontade de vomitar bateu forte e não dá tempo de girar meu corpo e abrir a tampa da privada e depositar minhas tripas junto à merda de outros, então eu vomito tudo, vomito na privada, nas paredes brancas, no chão, na lata de lixo, no papel higiênico e vomito mais, mais, achocolatado, suco de açaí, pão, presunto, queijo, chocolate branco, beterraba, cerveja, energético, tudo, vomito tudo e abro a porta do reservado cambaleando e o mundo gira e meu peito dói e minha respiração arde, é como se eu tivesse inalando fogo boca adentro e eu caio e vomito mais e mais e mais e começo e a me afogar no vômito, a engasgar, tossir, a chorar, a me desesperar e a imagem daquele porco sem corpo que repousa na minha frente, meus olhos virando, saindo de órbita, minha cabeça latejando, meu peito doendo mais ainda, o chão, chão branco, maculado pelos meus interiores, malcheiroso por causa do meu mal-estar, podre, contaminado pela minha podridão e de repente tudo pára, o silêncio reina, vem uma letargia confortante e depois é música, tudo é música, música calma, tranqüilizadora, que me deixa calmo, me faz bem e tudo é paz, tudo é branco e não existe mais sofrimento nem dor nem perda nem ódio nem frustração nem desamor nem traição nem nada, só eu vagando e me esbarrando nas paredes brancas e lisas do universo olhando meu corpo na outra dimensão largado no banheiro do terceiro andar mergulhado em vômito dando os últimos sinais vitais refletidos num espasmo derradeiro dos calcanhares. Eu só precisava de descanso...

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 02/08/2010
Código do texto: T2414909
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