Um dia de beleza
Como leitor ávido de Álvares de Azevedo, creio que tudo possui, inerentemente, uma face Ariel e outra face Caliban – em verdade, a ideia do mundo ser regido por um yin e um yang não é nem um pouco nova, e estou longe de julgar-me um grande ideólogo por entreter tal pensamento. Mas, até hoje, tendo vivido por 28 anos no cemitério dos vivos que é São Carlos, nunca pude encontrar nada de bom, o que abala tal milenar teoria.
Não há nada nesta cidade que não pareça-me mau, e independente das causas (que para mim são duas: seus políticos e seu povo), nada há que eu, uma única pessoa, possa fazer – e mesmo que pudesse, nunca se pode agradar a gregos e a troianos; portanto, permanece sendo meu consolo reclamar daqui e planejar uma rota de fuga, que, felizmente para mim e para a cidade, que igualmente me detesta, fica a cada ano mais próxima. As únicas perdas que lamentaria, quando um novo lar (ou a Morte) finalmente me receberem, seriam meus amigos (que espero também deixarem este lugar o quanto antes) e a rua secreta que um dia encontrei mas nunca mais pude localizar – e a fim de impedir que ela me saia da memória, mesmo após meu inevitável êxodo, deixo sua história registrada.
Precisei cuidar de alguns compromissos na cidade – termo este que emprego quando sigo à livraria para comprar alguma nova aquisição, ou simplesmente quero passear e encontrar algo ou alguém de meu interesse. Ando pelas ruas à procura de alguma visão inspiradora, mas quase sempre sou recepcionado pelos mesmos problemas de minha cidade, alguns inclusive que perduram há décadas; aquele dia em particular não foi muito diferente, e após ter passeado o bastante quis retornar à minha casa. Meu humor estava péssimo para que tomasse um ônibus, portanto resolvi seguir a pé.
Para que demorasse o máximo possível, já que também sinto-me mal em minha própria casa, fiz algumas voltas e reviravoltas até perceber que já não estava em um ponto conhecido. Não sabia mais como voltar por onde viera, então estendi ainda mais minha peregrinação até encontrar um lugar minimamente familiar – e foi aí que, não sei como, cheguei a uma rua desconhecida.
Não era uma rua particularmente deslumbrante; em verdade, parecia-se com tantas outras pelas quais caminhava diariamente. Era, inegavelmente, bonita – mas desprovida de algum grande e espetacular atrativo. Algo, porém, deixou-me tão contente com aquela rua que pela primeira vez em anos senti-me feliz com o ambiente que me cercava. Talvez por ser a primeira vez que a vira, portanto seguiu até então alheia ao meu ódio – mas não importa a causa. Só sei dizer que o céu pareceu mais azul, as folhas das árvores mais verdes e todas as casas pareciam esconder algo surpreendente, e foi quase em transe que deixei as premissas.
Muitas vezes tentei localizar esta rua, e por mais que voltasse aos mesmos locais onde havia me perdido distraidamente, não consegui recapturar meu percurso, o que talvez faria da redescoberta ainda mais intrigante. Penso às vezes que a cidade deve tê-la conjurado a mim numa tentativa de aplacar meu ódio, e se foi este o caso, é uma das únicas coisas boas a ter recebido de suas mãos, e pondo de lado meu rancor, aceito-a de coração.
(São Carlos, 13 de julho de 2022)