Atestado de Óbito
Ele nasceu. E chorou. Não tinha consciência que os primeiros berros que deu eram de liberdade. Como se dissesse “Sou livre! Eu nasci!”. Colocou as lágrimas para fora. O pai também. A mãe não se conteve de tanta emoção. O médico... Este não chorou. Já se habituara. O nascimento era tão banal quanto para aquele que assina um atestado de óbito.
Já estava vivo. Já era livre. Só faltava agora se dar conta da existência. Quando aconteceu... Tristeza. Dera os primeiros passos. Caiu e não se levantou. Precisou da ajuda da mãe. Ao perceber que já tinha consciência, viu que estava calçado. Sem a própria permissão. Os sapatos o diferenciavam dos “parentes distantes”. O protegiam da dor. Ele poderia pisar em espinhos com segurança. Mas também não saberia como suportá-los, caso viesse a encontrar um – por descuido – pelo caminho.
Cresceu e, sem entender, já ía à farmácia comprar outros tipos de “bombons”. Mal se lembrava que assistira de madrugada, nos intervalos dos filmes, comerciais de pessoas sorridentes que tomaram “o alívio prolongado por até oito horas”. Justamente o tempo de uma jornada diária de trabalho. Ele tomava as pílulas todos os dias, ía trabalhar e, “caso persistissem os sintomas”, nada se poderia fazer. Para estes casos, não havia como enfrentar uma contra-indicação. Mastigava os “bombons” e não questionava mais nada.
Só que ele não sabia que os sintomas iriam persistir. E que também não adiantaria ir ao doutor (que não tem doutorado). Médico algum resolveria o problema nem se emocionaria mais quando alguém fosse nascer. As dores musculares, de cabeça e nas costas persistiriam indefinidamente. Lembrava muito nestas horas daquele mandamento do pai “Homem não chora. Homem que é homem não derrama lágrima”. O mesmo pai que no dia do nascimento comemorou aos prantos o nascimento do filho. O médico realmente não teria como curá-lo nem esboçar reação em mais um nascimento.
Então o homem foi dormir com o “alívio prolongado” e lembraria naquela noite que precisava de um carro novo. O mesmo modelo que vira no comercial. Que vai de 0 a 100km/h em 5s. Mas ele não percebera que a vida não é um carro. E não se pode acelerar e desacelerar em tão pouco tempo. Ele não notou que no comercial são “cidades fantasmas”. Já na vida real, iria dirigir a 60km/h – por sorte – caso as ruas não estivessem engarrafadas. Ele realmente achava que o carro o faria feliz. Até... Até ele vir o novo veículo do amigo.
Este homem não iria entender que, desde criança, ele se comparava aos amigos de escola. E pedia ao pai o mesmo tênis de um colega e o novo video-game de outro. A mãe sempre convencia o marido de que era para o próprio bem do filho. E tudo vinha muito fácil.
E ele às vezes pensava e não entendia por que vivia trocando de celular, de computador, de máquinha fotográfica, de televisão e, até de mulher. Ele não lembraria que estava almoçando e que em algum programa, assistiu ao “Top 10 mulheres mais sexys”. Então sentiu necessidade de encontrar na rua, o que ele achava que não tinha em casa. Sem saber o motivo, precisava muito sentir o calor do silicone. Nem percebera a falta de feminilidade que aqueles corpos - deformados por academia e produtos artificiais - possuíam. Sem discernimento, dormira ao lado de uma boneca de borracha.
A única coisa que ele se lembraria é que não tinha caráter nem era honesto. Nem com os outros. E principalmente consigo mesmo. Mas nenhum programa de Tv transmitiu um “Top 10 pessoas com caráter e honestidade”. Só sabia que devia comprar cerveja. Mesmo não sentindo sede.
Pegou o novo carro e de madrugada – em um feriado – arriscou fazer os 100km/h em 5s. Chegou a 90km/h em 6s. Não se sabe quem errou. A propaganda ou ele. Bateu no poste. Havia no veículo latas e uma garrafa que dizia “continue caminhando”. Não pôde mais. Deixou de andar. Também não poderia mais chorar. Nem sentir dor.
Estava no caixão. Foi de terno. Ele tinha um. Era do trabalho, apesar de não exigirem no emprego. Mas o pai sempre dizia “O terno impõe respeito”. Foi o que levou. Nem carro. Nem eletrônicos. Nem membros descomunais pelo silicone. Foi o pedaço de pano feito sob medida que o acompanhou. Só que ele nunca tivera coragem de dizer ao pai que não suportava ternos. Teve de aturar por toda a eternidade a roupa que mais o deixava desconfortado.
Quem se aproximou do caixão e olhou para ele, poderia ver algo interessante. Ele parecia estar chorando. Que nem quando nasceu e dissera pelos berros “Sou livre! Estou vivo!”. Não. Era só impressão. Na verdade, eram os fluídos corporais que já estavam extravasando. Não havia mais chances de chorar.
O médico! O doutor que assinara o atestado de óbito parecia estar chorando! Também não... Era só um resfriado.