"Sabe com quem está falando?"
Depois de um dia cansativo, resolvendo problemas familiares, no abafamento nublado e espesso da capital mineira, encontrava-me no aconchego do carro do meu pai e estacionados aguardando meu tio, observei um guarda aproximando-se de um veículo que estava a poucos metros de onde nos encontrávamos. Chamou-me atenção os movimentos bruscos do guarda ao arrancar um bloquinho e caneta do bolso. Em segundos apareceu um homem de estatura mediana, cabelos muito curtos, vestido com roupas de academia e com semblante fechado. Como a distância não era muito grande consegui, com certo esforço devido ao barulho peculiar da rua, ouvir o diálogo. O homem cruzando os braços se dirigiu ao guarda com rompante de gente que se julga muito importante:
- O que foi amigo?
O guarda quase sem olhar para o rosto do sujeito estava a preencher a multa por estacionamento em local proibido. Como o homem insistiu e repetiu a pergunta, o guarda que por sinal parecia estar/ser sem paciência, disse em tom ríspido que de acordo com a lei tal (não decorei a lei de trânsito que ele mencionou) não se pode estacionar em frente a garagens, e não deu muito crédito ao ar de prepotente que o homem estava a lhe lançar. O homem vendo que o guarda estava quase terminando seu trabalho de preenchimento, quase cuspiu na face do guarda um “Sabe com quem está falando?” e sem dar tempo de resposta disse:
- Sou policial da Cia tal, genro do Sargento fulano de tal. Estou de saída, parei apenas para entregar uns papéis na loja em frente.
Novo silêncio – esse mais breve, e o guarda que já estava vermelho creio eu de raiva do sujeito metido a bonitão da bala chita, virou-se para o homem e disse algo que me fez querer gargalhar (e certamente o faria se não estivesse na presença do meu pai, que iria me repreender com medo de que os protagonistas da situação ouvissem o meu sonoro agudo de deboche). Meu pai também estava prestando atenção na cena, depois de ver-me concentrada na conversa alheia. A resposta bem dada do guarda foi a seguinte:
- Não sabia com quem estava falando, pois preciso somente da placa do carro para preencher a multa que deixaria no próprio veículo, mas agora que o Sr. se apresentou acredito ser pouco a multa que lhe dei, pois sendo uma autoridade já deveria saber os locais onde deve e não deve estacionar. Meu trabalho já foi feito. Tenha uma boa tarde!
Excelente! Palmas de pé para o guarda. Depois dessa resposta pensei que o homem ia dar uns tiros ali mesmo. Eu e meu pai demos uma risadinha, que depois em casa contando pra minha mãe se tornou uma intensa gargalhada. Mas o desenvolver posterior a fala assertiva e acertada do guarda, foi o homem entrar no carro e sair “cantando os pneus”.
O fato me fez lembrar de uma reportagem num jornal e de um artigo. Mesclei as duas informações e fiquei a pensar na situação brasileira com relação à cidadania. Cidadania lembra igualdade, às partes formando um todo que beneficia o indivíduo/cidadão, porém no Brasil o todo predomina sobre as partes, onde o que vale e a palavra de ordem é a “relação”, isso não sou eu quem digo, é Roberto Da Matta, em seu livro “A casa e a Rua”, no qual deixa clara(s) as diferença(s) entre a cidadania na América latina e no território norte americano. Essa importância às relações que faz um indivíduo achar que é mais indivíduo/cidadão que outro porque faz parte de alguma instituição e porque é genro de tal autoridade.
Imprópria a pergunta: “Sabe com quem está falando?” numa cidade de 2.412.937 habitantes, segundo recenseamento feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2007. Lembrei da reportagem onde no sul do país, pra ser precisa SC (Santa Catarina), um indivíduo (que não era guarda) foi chamar atenção do outro pelo mesmo motivo, estacionar em local proibido (reservado para deficientes) e foi agredido por uma barra de ferro do animal (i) racional que ficou nervosinho com a repreensão. De acordo com Barros (2010), no seu artigo (“Cidadania como sentimento” - http://www.recantodasletras.com.br/artigos/2204782) “A cidadania como sentimento aponta também para os deveres, campo no qual não teríamos tanta dificuldade se os direitos fossem garantidos...”
A voz que o cidadão tentou ter quase causou-lhe o direito à vaga que ele reclamou por ser ocupada indevidamente, tendo em vista que foi internado para remoção do coágulo que se formou em seu cérebro. Seria cômico se não fosse trágico, mas a noção de importância negativa que o brasileiro se dá é o que inverte e se opõe gritantemente à noção de cidadania, porque esses indivíduos tem uma autoestima que os eleva a pensar que são melhores, ou é o contrário e por isso tentam se elevar. Em outra hipótese nem um, nem outro, mas sim apenas a ausência de consciência que causa danos às partes, porque o núcleo do todo é a parte que predomina e dilacera a palavra Cidadania que se esfarinha e é varrida do verde e amarelo de uma pátria desconexa do padrão igualitário, que só possui “Ordem e Progresso” na bandeira.
Após minha reflexão, já em casa, cansada e pedindo pelo momento do ócio produtivo de uma leitura agradável, minha mãe me convocou a lavar as vasilhas, sem perceber meu tom disse: “Agora não mãe...” Com olhar fuzilador e dramático eis que ouço novamente a frase: “Sabe com quem está falando?” Bom, diante da hierarquia familiar, o respeito que tenho por ela e como não possuo relações suficientes para me dar bem diante da situação, revesti-me de humildade e soltei um: “Já estou indo, mãezinha...”