PEQUENA REFLEXÃO SOBRE A MORTE
No genial filme “O Sétimo Selo”, de Ingmar Bergman, a morte aparece encarnada com seu figurino oficial: uma apavorante e definitiva capa preta. Após intermináveis partidas de xadrez com um cavaleiro medieval, a morte, enfim, cumpre a sua missão. Não há júbilo em sua ação. Ceifa como um fazendeiro colhe, no tempo certo, a sua safra.
Acontece que a morte está sempre à nossa volta, nos ensinando a dar o próximo passo, a escapar de armadilhas e a refutá-la. Caso estranho de amor com a morte viveu o poeta Manuel Bandeira. Tuberculoso, no tempo em que o diagnóstico era apenas precursor do atestado de óbito, Bandeira teve a sua existência marcada pela espera da morte no ano seguinte, no mês seguinte, no dia seguinte. Todos os dias da sua vida foram vividos como se fossem os últimos. A morte lhe aplicou uma sentença diferente: viver até a velhice, mas como fugitivo, como morimbundo, como vencido. Um otimista enxergaria aí uma concessão, uma espécie de licença poética que a morte lhe ofertou.
Como até Vinícius de Moraes, humildemente declarou ser diante de Bandeira, poeta menor, não ousaria nem me mencionar diante de seus ossos. Mas, a morte também visita a nós, pequenos mortais. Meu primeiro contato com a morte não foi, como não poderia ser, muito lucrativo para mim. Menino de 9 ou 10 anos, convivi com uma tragédia infantil no meu bairro. Dois amigos, um da minha idade e outro, de 12 anos, resolveram brincar, como todo menino, de bandido e policial. Mas havia uma espingarda de verdade, carregada, e o policial, de 12 anos, matou o bandido, de 9 ou 10 anos, após render-lhe e tê-lo sob sua mira com as mãos para cima. O crime abalou o bairro. Creio que abalou a cidade. Eu tinha duas calças compridas na época. Um feito para um garoto da minha idade. Acontece que o morto não tinha nenhuma calça comprida, andava de calções e até nas ocasiões especiais era assim que se apresentava. Minha mãe tocada por solidariedade à família do morto, família amiga do morto, resolveu doar metade das minhas calças para que o menino pudesse ser enterrado como gente grande.
Não lembro de ter protestado ou criado qualquer obstáculo para que parte de mim fosse enterrada com o menino morto. A calça comprida representava para mim, e para qualquer outro guri na época, o passaporte para o mundo dos adultos. Uma espécie de poder, de emancipação. Eu tinha apenas duas e dei a minha melhor para vestir para sempre aquele menino, um irmão que morava há uns cem metros da minha casa, mas que não comungava comigo das mesmas brincadeiras. Mas ali estávamos agora, ligados para sempre, pela eternidade, através das nossas vestes. É uma idéia que me apavorou na minha meninice mas que me oferece um certo alento na minha vida adulta.
Não penso nesse caso com muita freqüência. Mas a partir dali a morte passou a ter significado na minha vida. Assisti e pranteei à morte de um irmão, de uma avó, de um tio, de parentes, de amigos e de celebridades que conheci apenas pela televisão ou de nome. A morte nos ensina mais pedagogia e filosofia do que os bancos da universidade. É assustador, às vezes, como a morte de alguém na distante Hungria tem o poder de nos entristecer. Ou como a morte de um vizinho ou do cara da padaria não consegue encaixar no nosso coração um sentido pesar. Há nisso uma racional explicação. Mas, hoje eu não quero racionalizar a morte, não tolero uma teoria sobre o assunto. Quero permitir-me apenas, pelo menos na magia deste momento, que a morte seja entendida como o maior dos mistérios. Nem um predicado além ou aquém desse lhe seria honesto conceder.