A REVELAÇÃO NUMA SÓ PALAVRA
Já tinha terminado mais algumas páginas de outro livro que estou escrevendo e passei a refazê-las. Gosto tanto disso quanto de escrever. Frase por frase fui buscando a melhor forma, o melhor sentido, trocando palavras.
- Limpando o texto, hein mestre! - diz Vulpino Argento, o demente, interrompendo atrevidamente meu trabalho.
Não sei se limpar é a palavra certa pois suponho que não existam palavras sujas, usando uma lógica aristotélica inversa, mas, ainda assim, concluindo por inferência.
- As palavras são puras, Vúlpi! O mau emprego delas, quando faladas ou escritas é que dão ao texto uma aparência suja. As palavras servem para expressar qualquer coisa. Sujas ou limpas...
- Talvez! – interrompe com certa ironia - Uma imagem vale por mil palavras.
- Pois diga isso sem usar nenhuma palavra! – devolvi com redobrada ironia, encerrando a conversa.
Olhando para as palavras daquela página no monitor do PC fiquei imóvel pensando e visualizando outras em minha memória. As palavras têm significado próprio, é claro. A quem as escreve cabe usá-las da melhor maneira possível, porém existem palavras e pessoas inseparáveis. Já escrevi sobre patifes, notável palavra que serve de definição para muitas pessoas. Pois sujas devem ser as pessoas não as palavras. Porém ao ressaltá-las, o que as fazem ainda mais importantes, alguns detalhes devem ser observados: quando se escreve a palavra “patife”, por exemplo, é assim mesmo que se faz; com essas letras todas. Não há nada para ser mudado ou alterado, pois o que está para ser visto é exatamente o que se vê. Pronunciada, porém, pode ser com nuanças variadas; atenuante quando dita com carinho. Pode ser.
- Então pronuncie agora essa palavra! – ouço Vúlpi dizer imperativamente, penetrando assustadoramente em meu cérebro - Diga patife.
- Patife – disse de súbito, sem me controlar.
- Não é assim, não! O som do “a” não é aberto, com em “pá”; é fechado, como em “pão”. Depois vem o “t” e o “i” que, juntos, jamais poderão ser sonorizados como se fossem acompanhados de “x”. Portanto, não diga “txi”. O “ti” de Patife deve ser pronunciado com a prosódia nordestina; recifense, maceioense ou caririense – da região do Cariri, no Ceará. É um “ti” dito “ti” empurrado com a língua por trás dos dentes da frente e de cima. E por fim, o “f” e o “e”; eles devem sair com um som fininho; de um efe sem o último e. De pneu sendo esvaziado; ou de pum.
- Credo, Vúlpi! – disse já sentindo mau cheiro.
- Esqueça o ultimo “e” e acrescente em seu lugar um “izinho” bem tímido; invisível, encabulado, não querendo aparecer. O “f” se sustenta sozinho. Agora repita comigo: pãtif!
- Pãtif!
- Isso, quase bom. Mais uma vez!
- Pãtif.
- Tá faltando sentimento. Bota indignação nisso; ou será que o mestre não tá vendo mais na tv o programa gratuito do tribunal eleitoral? Diga pãtif mais uma vez e pronto.
- Pãtif!
- Já está bom, por hoje. Mas fique atento, mestre, observando. Você ainda terá incontáveis oportunidades de pronunciar essa palavra. Observe quem nega o que é evidente. Esse não é um “cara-de-pau”, como se dizia antigamente; esse é o pãtif. Outro que merece esse epíteto é aquele que acha que você é que é o problema. O que é isso, pãtif? L´enfer cest les autres.
Quase tive um infarto quando ouvi Vúlpi mencionar Sartre e no original. Difícil não concordar com Vúlpi. Ou com Sartre?
- Tem gente, mestre, que não se dá contas do mal que faz, não reconhecendo em si mesmo a presença do mal. Vê o que está a sua volta, mas nunca além do que lhe é conveniente. Não ofende ninguém nem chama de “pãtif” o mais refinado vigarista.
Não se vê idêntico, não tem espelho, não sabe nada, não se compromete.
Assustado e temendo pelo pior, fosse que pior fosse, assenti rapidamente com um gesto de cabeça. Estava com medo. Vúlpi porém fez outra leitura.
- Será que meu mestre - odeio quando ele me trata assim - está reconhecendo alguém? E possível! É bem possível – disse por mim sem me dar nenhuma chance. Antes que eu pudesse reagir.