VVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVVV
vida inteira
Ergueu o braço, pela milionésima vez, na sua prolongada existência, num aceno truncado, aonde a mão já não se moveu, enquanto os olhos pareciam mirar o nada e a boca entreaberta assim permaneceu e o sorriso outrora instantâneo não conseguiu revelar-se naquela rigidez de octogenária, beirando os noventa anos.
Dona Quintina já tinha vivido muito e eu me acostumara a passar em sua casa e ver ali uma idosa há muitos anos, que parecia fortaleza à qual nenhum vento faria vergar o corpo. Mas hoje, ao acenar pra ela estando do outro lado da rua, entendi que agora ela realmente atingira o estágio senil, apesar de ainda estar com aquele seu cabelo curto e espetado com jeito de tintura e algum "coiffeur" recentes e o porte ereto na sua altura avantajada.
Uma animação daquelas era de fazer inveja a muita mulher jovem e certo dia ela me dissera com ar muito compenetrado e satisfeito que havia um remédio muito bom que o médico lhe receitara. Qual era ? E veio a reposta em cheio: lezotan, pronunciado o X como Z. Ah, realmente era um remédio muito bom, comentei, segurando o riso. Mas creio que o médico que lhe deu tal receita deveria estar equivocado ou provavelmente pensava em manter a sua pressão controlada, porque tranquilizante pra Dona Quintina parecia algo que destoava um pouco daquele seu modo de ser constantemente em paz com a humanidade.
E se amanhã alguém me contasse que ela morreu, provavelmente eu acharia estranho e diria, olha, a Dona Quintina não tem como morrer, porque com esta idade uma pessoa já tem direito adquirido de simplesmente dormir e não acordar mais. Morrer é pra pessoas mais jovens, que deixam a vida pela metade ou nem isso. Depois dos oitenta, creio que as pessoas apenas se viram para o lado e dizem, bom, agora deu pra ti, já é hora de ir indo. E vão. Vão bem tranquilas. Só não entendo por que aquele poeta se suicidou aos oitenta e cinco, como se chamava mesmo? Foi pra debaixo de um poste à noite e deu um tiro na cabeça. Nunca entendi por que teria feito isso. Não, não falo do suicídio, falo do local, debaixo de um poste de luz. Ficou esta lúgubre imagem na minha memória.
Ter a vida nas mãos é estar sempre começando, recomeçando. Isso não é tarefa fácil, mas era pretender muito que as coisas ocorressem como mágica, e também convenhamos que sofrimento é a ante-sala de um momento especial, e o grande lance é estar atento a isso, entregar-se com vontade ao suplício de umas horas ou até dias, usar o sofrimento e não ser usado por ele. Dona Quintina que o diga, ela sabe disso muito bem, do contráro não estaria ainda por aqui, chupando seu picolé aboletada na sua cadeira ali na área da frente do seu chalé de uma cor indefinida, algo entre amarelo e cor- de burro- quando foge.
Amanhã, quando eu passar por lá, vou puxar uma prosa com ela, como já o fiz tantas vezes e não por caridade nem pra fazer o social com vizinhos, mas em proveito próprio, que ela nem imagina o quanto já me fez bem ter a sua simpática atenção, algo de reviver antigos convívios, ter aquela sensação da casa ocupada com avós, tias, amigos a qualquer hora, sem pressa, fazendo a vida ser algo assim de ir degustando devagar, provando atentamente os diferentes sabores das coisas diárias e aparentemente banais, olhando realmente para os outros, sentindo os cheiros, as cores do seu mundo ali palpável, ao invés de assimilar a realidade por uma fria tela que faz um vídeo-clipe grotesco e parcial e principalmente mal intencionado do que chamam realidade.
A minha realidade é o chão que eu piso, o lugar aonde moro, minha família, os meus gatos, plantas, conhecidos, convívios e trabalho. E nela tem Dona Quintina, maravilhosa, fortaleza de velha árvore acolhedora, apontando um caminho bem claro para quem souber apreciar.
vida inteira
Ergueu o braço, pela milionésima vez, na sua prolongada existência, num aceno truncado, aonde a mão já não se moveu, enquanto os olhos pareciam mirar o nada e a boca entreaberta assim permaneceu e o sorriso outrora instantâneo não conseguiu revelar-se naquela rigidez de octogenária, beirando os noventa anos.
Dona Quintina já tinha vivido muito e eu me acostumara a passar em sua casa e ver ali uma idosa há muitos anos, que parecia fortaleza à qual nenhum vento faria vergar o corpo. Mas hoje, ao acenar pra ela estando do outro lado da rua, entendi que agora ela realmente atingira o estágio senil, apesar de ainda estar com aquele seu cabelo curto e espetado com jeito de tintura e algum "coiffeur" recentes e o porte ereto na sua altura avantajada.
Uma animação daquelas era de fazer inveja a muita mulher jovem e certo dia ela me dissera com ar muito compenetrado e satisfeito que havia um remédio muito bom que o médico lhe receitara. Qual era ? E veio a reposta em cheio: lezotan, pronunciado o X como Z. Ah, realmente era um remédio muito bom, comentei, segurando o riso. Mas creio que o médico que lhe deu tal receita deveria estar equivocado ou provavelmente pensava em manter a sua pressão controlada, porque tranquilizante pra Dona Quintina parecia algo que destoava um pouco daquele seu modo de ser constantemente em paz com a humanidade.
E se amanhã alguém me contasse que ela morreu, provavelmente eu acharia estranho e diria, olha, a Dona Quintina não tem como morrer, porque com esta idade uma pessoa já tem direito adquirido de simplesmente dormir e não acordar mais. Morrer é pra pessoas mais jovens, que deixam a vida pela metade ou nem isso. Depois dos oitenta, creio que as pessoas apenas se viram para o lado e dizem, bom, agora deu pra ti, já é hora de ir indo. E vão. Vão bem tranquilas. Só não entendo por que aquele poeta se suicidou aos oitenta e cinco, como se chamava mesmo? Foi pra debaixo de um poste à noite e deu um tiro na cabeça. Nunca entendi por que teria feito isso. Não, não falo do suicídio, falo do local, debaixo de um poste de luz. Ficou esta lúgubre imagem na minha memória.
Ter a vida nas mãos é estar sempre começando, recomeçando. Isso não é tarefa fácil, mas era pretender muito que as coisas ocorressem como mágica, e também convenhamos que sofrimento é a ante-sala de um momento especial, e o grande lance é estar atento a isso, entregar-se com vontade ao suplício de umas horas ou até dias, usar o sofrimento e não ser usado por ele. Dona Quintina que o diga, ela sabe disso muito bem, do contráro não estaria ainda por aqui, chupando seu picolé aboletada na sua cadeira ali na área da frente do seu chalé de uma cor indefinida, algo entre amarelo e cor- de burro- quando foge.
Amanhã, quando eu passar por lá, vou puxar uma prosa com ela, como já o fiz tantas vezes e não por caridade nem pra fazer o social com vizinhos, mas em proveito próprio, que ela nem imagina o quanto já me fez bem ter a sua simpática atenção, algo de reviver antigos convívios, ter aquela sensação da casa ocupada com avós, tias, amigos a qualquer hora, sem pressa, fazendo a vida ser algo assim de ir degustando devagar, provando atentamente os diferentes sabores das coisas diárias e aparentemente banais, olhando realmente para os outros, sentindo os cheiros, as cores do seu mundo ali palpável, ao invés de assimilar a realidade por uma fria tela que faz um vídeo-clipe grotesco e parcial e principalmente mal intencionado do que chamam realidade.
A minha realidade é o chão que eu piso, o lugar aonde moro, minha família, os meus gatos, plantas, conhecidos, convívios e trabalho. E nela tem Dona Quintina, maravilhosa, fortaleza de velha árvore acolhedora, apontando um caminho bem claro para quem souber apreciar.