"HORA DA SAUDADE"
Não me recordo bem se – parece que sim – o nome do programa era mesmo este: “Hora da Saudade”. Mas meus pais, uma vez por semana, montavam guarda ao pé do rádio; um gigantão de aparelho, em bonito ‘design’, da marca Invictus. Ô bicho de rádio bom, que nunca dava o prego! E era quase do tamanho de um televisor de vinte e muitas polegadas.
De volta ao gosto musical de meus pais, eles eram doidos pelas modinhas que o programa levava ao ar. Só cantores das antigas, do tipo Francisco Alves, o “Chico Viola”, Sílvio Caldas, Carlos Galhardo, Augusto Calheiros, Vicente Celestino, Orlando Silva, o “Rei da Voz”, Dalva de Oliveira, Ângela Maria, e o filão sonoro ia por aí. Televisão, ainda, nem pensar. Então, para o melhor das minhas ouças, eu imitava o gesto do casal de coroas e me caía, também, lá, no sofá da sala.
José Limaverde, o mitológico homem de rádio. Apresentador, rádio-ator e locutor de mão-cheia. Um vozeirão de emocionar até a estátua do imponente Duque de Caxias. Invariavelmente, à noite, em dia certo e hora marcada da semana, Seu José Limaverde carimbava no ar aquele seu – lá dele – muito inimitável “Coooooisas que o tempo levou!” Não entendo de mídia, nem de linguagem radiofônica, mas acho que esse dizer era um ‘jingle’, coisa muito batata, que enchia os ouvidos da gente.
Na sua excitante elocução de comunicador tarimbado, além de ser um dos pioneiros da nossa radiodifusão, Seu José Limaverde, com programa de estrondosa audiência, virava atração para a minha família. Pelas ondas curtas e médias da Ceará Rádio Clube, a velha PRE-9, que a gente com carinho chamava de “Pré-nove”, dava gosto escutar o protótipo dos radialistas do Ceará, ali pelos meados dos anos 50, começo dos anos 60. Convém lembrar que a televisão só chegou, aqui, em 1960, quando, pela TV Ceará, Canal 2, do Grupo Assis Chateaubriand, o Renato Aragão iniciava-se no caminho da celebridade.
Como ressaltei acima, o aparelho de rádio, o Invictus, era um caixotão enorme. O bicho pegava emissoras do mundo inteiro, tudo em línguas enroladas. Parecia uma platina de som, um estrupício de sonoridade que era uma beleza. Montada em nossa casa, no Monte Castelo, aquela máquina falante, loquaz, que só ministro, induzia que o senhor radiouvinte se transformasse apenas em orelhas e ouvidos. Isto mesmo! Orelhas diferem dos ouvidos, que são os mecanismos internos, indo lá aos tímpanos.
Pois era exatamente o que nós fazíamos: todos, em casa, virávamos só ouvidos. Diante da máquina bisbilhoteira, não sei se às terças-feiras, em horário nobre, como se diz ainda hoje, nós nos recreávamos na festa da audiência. E o insigne locutor fazia, com capricho: “Estamos apresentando, pela sua PRE-9, coooooisas que o tempo levou! Esta atração da Hora da Saudade, senhores ouvintes, sempre neste horário, tem o patrocínio da mobiliária Furna da Onça, que fica bem ali, a dois passos da Praça do Ferreira.”
A voz insinuante do locutor acrescentava, ainda, ao comercial, um texto muito engraçado. Primeiro Seu Limaverde anarquizava com o produto, tachando os móveis todos de “geringonça”, “tafularia”, etc., etc., mas com objetivo único, lógico, de conduzir o consumidor a meter na cachola que as peças de arte da tal Furna da Onça eram a melhor pedida em matéria de decorações do lar.
De fino gosto, até dispensando o sofá, meu pai era quem mais botava o ouvido rente com as ondas hertzianas. Esquecia-se do restante do universo. Músicas bonitas e penosas içavam-se nas vozes do timão de artistas que citei supra; e as canções pulavam do lado de fora do retângulo do Invictus. Sensitivo, o motor arrancava de si coisas d’antanho, romantismo puro, versos de saudade. A poesia passadista aflorava à nossa pele, advinda dos botões do rádio, lá donde caíam as maviosas notas musicais.
Ah, saudade doída, quando se mexe com as relembranças daquelas idas e ouvidas audições da Hora da Saudade! No bauzinho da cabeça da gente, por tabela, até parece que Seu Limaverde, o comunicador, e meu pai, o velho Olegário, sem sequer se conhecerem, eram camaradas amigos, e de bastante longa data. É que o primeiro praticava a arte, ao microfone, e o segundo fazia arte, consumindo-a, ao ouvir o homem do vozeirão e o repertório de músicas antigas. E meu pai – todo ele – se encharcando de emoções e de saudades. Mas sei lá saudades de quem!...
Fort., 30/07/2010.