O MENINO E O CÃO
O MENINO E O CÃO
Sobre uma folha de papelão, enrolado em um cobertor esfarrapado, dormia um pequeno cidadão brasileiro, sem nome, tendo a seu lado, sob o mesmo cobertor, um cãozinho pé-duro. Esse era o quadro que a injustiça social do nosso país impunha aos olhos dos passantes, nativos e visitantes, numa das avenidas mais badaladas de nossa decantada Fortaleza.
Aquela criança deveria estar pelos treze ou catorze anos. A pele suja e o rosto esquálido formavam um retrato fiel da adolescência abandonada de nosso país. Ambos dormiam profundamente, indiferentes aos olhares dos que, igualmente indiferentes por ali passavam.
Um pequeno pedaço de pão ressequido demonstrava o companheirismo que só existe entre verdadeiros amigos. Talvez fosse a sobra do jantar de ambos. Quem sabe, um pedaço de pão seco e uma pedra de crack, talvez tenham sido tudo o que consumiram antes de dormir.
O cãozinho parecia feliz. Eram dois seres carentes que se aqueciam naquela madrugada fria. As sirenes dos carros de polícia soavam bem longe e os passos apressados dos que largavam o trabalho àquela hora, aos poucos, iam retocando o quadro. No silêncio da noite, sobrava-lhes tão-somente o ressoar das ondas que languidamente se esparramavam na praia.
Detive-me, por alguns instantes, diante daquela cena tão comovente. De repente, lembrei-me de um tempo longínquo, mas sempre presente nas minhas lembranças, quando, após uma exaustiva jornada de trabalho, caminhava pelas noites frias de inverno em busca de um táxi para levar-me pra casa. Cansado, via aqui e ali, debaixo das marquises das lojas e escritórios, muitas almas dormindo sob papelões e jornais velhos. Era a vida. Naquele tempo, a visão daqueles desvalidos servia-me de consolo e meu coração se enchia de gratidão a Deus por tudo o que eu tinha. Na verdade, em termos materiais, não era muito. Mas eu tinha um leito onde repousar o corpo cansado; tinha uma mulher a me esperar e um copo de leite bem quentinho para aquecer o estômago. E eles, o que tinham. Eu era rico e não sabia.
Enquanto as lembranças vinham em profusão, mais uma vez agradeci a Deus por tudo. E, silenciosamente, ergui uma prece por aquela criança e por todos os desassistidos da sorte que povoam as ruas e praças de nossa cidade.
Assim, com o coração dividido entre a gratidão e culpa, fui para minha casa tentar dormir.
Luis Gentil
Julho/2010