PEDAÇOS DE NÓS!
Era uma casa simples aquela. Três quartos, sala, cozinha.
E quintal. O quintal da cachorrinha Laica.
- Você se recorda, Bud, por quantos anos aquela família morou alí?
- Os anos, propriamente não. Lembro-me das mudanças que ali se efetuaram. A filha veio menina, saiu moça; o filho veio adolescente, quando foi embora de casa já era homem. O pai, bem apessoado de início; barbudo e mal humorado no fim. A mãe, trabalhadeira como poucas, segurou a família unida, até que foi necessária a separação. A casa foi devolvida ao proprietário e, vazia por longos meses, ali pareciam ecoar as vozes das crianças, as latidos da Laica...
- O motivo de lembrar-me disso agora, já tão distante no tempo?... É que a mulher esteve aí fora hoje, olhando a casa... e o fato voltou do passado, tão nítido... que triste e sombria foi aquela mudança da família despedaçada!
Depois de apenas algumas horas da mudança, lembro-me, a Laica voltou e deitou-se à porta da entrada, onde costumava ficar...
Como se a família ainda ali estivesse. Como se tudo continuasse como antes. A Laica recusava-se a aceitar as mudanças que a entristeciam; recusava-se a aceitar que o momento era... outro e que o tempo... existia !
A mulher não disse uma única palavra... mas a expressão dela... transbordava em gritos de angustia:
-Saiam, pelo amor de Deus! Somos nós que estamos aí dentro. São nossas as lembranças... o dia amanhece... eu faço café...o cheiro bom se espalha pelos cômodos ainda quietos; pouco a pouco os filhos se levantam... bom dia, mamãe! O meu marido, o homem com quem me casei e que me amava... chega, barbeado... bom dia, querida!
Saiam, pelo amor de Deus! Somos nós que estamos aí...
É nossa a história que mora entre essas paredes! É nossa a emoção que, perdida, ronda como fantasma do passado, pelos cantos, procurando os corpos nossos, para neles voltar a reviver a memória, no presente!
Somos nós que estamos aí! Saiam, intrusos! Deixem esses cômodos que são meus! Eu os amo todos, com seus enfeites de Natal, com seus ovos de Páscoa, com as bexigas dos aniversários!... meu fogão era branco...meu quintal...meu pé de jabuticaba!... aonde estão os meus filhos?.. Laica!... Socorro!...
-Era isso, Bud, que a expressão dela dizia, quando virou o rosto para esconder algumas furtivas lágrimas...
A vida vai ficando um pouco em nossas casas e penso que todos, todos aqueles que se mudam de onde foram felizes, querem no presente, um futuro que retorne algum momento do passado...!
De casa em casa, um tanto aqui, algo acolá, cada pedaço de nós se desloca, errante, desnorteado, que, sem jamais encontrar o todo, esgota-se na tentativa inútil de recompor as partes! Como a alma é despedaçada...!
-Pelas barbas do profeta. Chega! isto aqui, afinal, é algum... açougue? Tudo em... pedaços ! Conheço um boi que, de bom grado trocaria o próprio corpo retalhado por essa... alma despedaçada! É boi da “Farra do Boi”!