Televisão

Tudo começou quando meu avô veio passar alguns dias comigo, gostei muito de hospedá-lo, ele é muito tranqüilo, não necessita de ajuda para nada, é muito independente.

Acho importante explicar que meu avô sempre viveu no interior, não em cidade do interior, mas no campo mesmo, se dedicou a agricultura, criava gado, trançava couro e palha, e outras funções essenciais ao fazendeiro, como sempre apregoou aos quatro cantos, quem não sabe fazer não sabe mandar!E o danado sabia.

Ele não é alto nem gordo, mas sim entroncado, é “maciço” (lembra um tanque de guerra) pele bem clara, sardento, cabelo branco que já foi loiro um dia, olhos bem azuis inquiridores,mãos fortes que transmitem segurança.

Com pouco estudo, nunca conseguiu pronunciar direito palavras com lh, e engolia algumas letras, (vou escrever como ele fala). Possuidor de uma sabedoria natural de quem tem paciência para que as coisas aconteçam a seu tempo, bom senso, valores morais arraigados, profundo respeito pela natureza. Dono de caráter firme, e personalidade marcante. Achava uma humilhação fazer a própria barba, ia sempre ao “salão de barbeiro”.

Barba? Só com navalha!

Mesmo sendo bastante idoso, é ágil, tem boa saúde e é impiedoso observador.

Sentada no sofá ao lado dele, depois de ouvir com muito interesse seus “causos” engraçados e rirmos bastante, resolvi ligar a televisão, não sem antes pedir a sua opinião, afinal ele era meu hospede muito querido. Ele aquiesceu.

Tem momentos que a gente tem mais é que ir para cama fechar bem os olhos e se possível nem respirar para evitar fazer besteiras.

Quis saber a opinião dele diante de um avanço tão grande da tecnologia, coisas com as quais ele nem sonhava que poderia chegar a ver, como a televisão.

-O senhor gosta de assistir televisão?

-Não gosto muito, quase nunca vejo, só na casa dos outro, eu mesmo nem tenho isso aí. Mas liga quem sabe aqui eu vejo outra coisa diferente.

Não entendi muito bem, mas liguei o televisor.

Parecia muito interessado, olhava a tela de modo interrogativo, a cabecinha dele estava fervendo de perguntas. Notei que estava muito quieto, mesmo sabendo que gente que vive no campo não é de falar muito.

Eu o conheço bem, e sei do terrível mal que acompanha muitos de nossa família: a curiosidade e senso crítico, é como uma “praga”( segundo ele).

Pressenti uma tempestade...

-Você é sabida, com você eu posso perguntá o que quisé, com os outro tenho que tomá cuidado, senão eles fala que endoidei.

-Claro vovô, pode perguntar o que quiser.

Ele se calou, assistindo durante determinado tempo algumas propagandas e programas, ele só fazia uma expressão de recusa e balançava a cabeça desaprovando.

Não demorou muito e a primeira pergunta veio com tudo para cima de mim como uma bomba!

Estavam transmitindo um comercial de cerveja.

-Fia, porque tem tanta gente veno o homem abrí a lata? Eles não sabe como abrí?

-Não é isso vovô, é que estão fazendo propaganda da marca da cerveja, tem muitas marcas.

-Pra que? São todas iguar, olha o copo deles é tudo iguar. Eles já deve tá bêbado porque pula e ri demais e nem se importa com as mulher quase pelada perto deles e eles nem liga... Ahh se elas ficasse assim no meu tempo não ia dá em boa coisa. Que bsurdo!

Fiquei calada, não concordei nem discordei.Ele ficou pensando... Eu com medo da próxima pergunta, e ela não demorou muito.

-Fia, porque eles fala gritano sempre a mesma coisa. Só fala repetino , não perca, é novo, vá correno, compre já, as primeira cem pessoa que ligar agora, você ainda não tem, melhor preço, disconto de setenta por cento. Será que eles acha que tem gente que credita nele?Como vou sabê escoiê?

-Depende do que o senhor quiser comprar, eles fazem propaganda dos produtos que as lojas vendem.

-Parece que eu tenho que saí correno agora, sinão não posso mais comprá. E se eu fô hoje e chegar lá já tive mais de cem na minha frente? O preço vai sê diferente?

-Não, eles fazem isso para chamar mais atenção sobre a loja ou o que eles querem vender.

-Que bobage! Falatório atoa, pensa que a gente é besta e vai compra o mais caro!Prosa de palerma.

Continuamos olhando a tela e eu olhando para ele, temerosa...

De repente, pimba, outra pergunta!

-Não credito nisso!

Ele estava indignado, gritou batendo as mãos no joelho se levantando.

Levei o maior susto com aquela reação.

-O que foi?

Ele sentou novamente.

-Esse povo tá louco, não credito! O homem não me conhece, não sabe da onde eu vim nem onde moro e qué me empresta dinheiro? Diz que me dá mais dinheiro se eu fô aposentado. Ele é louco, vai se lascar, tomara que não descubra onde eu tou.

-Calma, ele não vai saber onde o senhor está se o senhor não for lá.

-Graças a Deus, inda bem. Imagina ele diz que te dá um dinheirão e você pode pagar um pouquinho em muitas “veiz”, o aposentado é pobre, emprestá dinheiro pra pobre é a pior viaje, sabe quando ele vai recebê tudo? Nunca, o sujeitinho morre antes de pagá, não quero nem vê o resurtado! A famia que vai pagar o pato!

Temerosa perguntei se queria ver outro programa , ele concordou na hora, mudei rapidinho de canal, mas daí sim que a situação piorou. Era uma banda dessas atuais com moças dançando com pouca roupa, rebolando bastante.

-Dexa aí que eu quero vê.

Ótimo pensei comigo mesma, agora quem sabe ele se lembra dos bons tempos, e depois qual homem não gosta de ver mulher rebolando?

Ele por um bom tempo continuou olhando a dança, pensativo e me surpreendeu de verdade quando disse:

-Você sabe o nome daquele remédio prá combatê verme? Eu isqueci, era um santo remédio...

A estas alturas eu quase nem lembrava mais nem o meu nome. Curiosa com a pergunta quis saber por que ele foi se lembrar do remédio justo no momento que estava vendo o show de dança.

-Porque quer saber?

-Sabe, fia eu acho que essas moça deve ter verme. Tenho ixperiência nessas coisa, sei o que tô falando.

-O que? Vermes??

-É isso mesmo, aposto que elas têm verme, se for lombriga tudo bem, é fácil de matá, mas Deus nos livre, que não seja aquela enorme que fica toda enrolada dentro das pessoa, parece cobra, acho que chama solitária.

Não é possível! Não é possível alguém associar dança a vermes intestinais. Só ele mesmo!

-Vô porque o senhor diz isso?

-Ô menina você não tá vendo que elas levanta a bunda e balança como se quisesse se coçar o se livrá de alguma coisa que ficou pindurada ali? Parece que você nem é estudada e não sabe vê quando uma pessoa tá com probrema de verme, essas aí agacha com as perna aberta pra ficá mais fáci de saí. Elas tão ensinano como fazê, mas não entendo porque tem que tê a musica... Que vergonha fazê isso pra todo mundo vê! Isso a gente faiz no banheiro, iscondido. É o fim du mundo!

Quase desmaiei de susto. Não, não era possível, eu não tinha ouvido direto, ele devia estar brincando, aquilo não podia ter passado por aquele cérebro já meio danificado, mas que investigava tudo analisando por um prisma jamais pensado por um ser humano normal.

Ai, e agora como vou explicar que os passos da dança são assim. Aceitei o desafio não vou falar nada, fechei a boca, aliás, lacrei!

Mudei de canal o mais depressa que pude. Acho que acertei, pois era sobre mágica, o mágico era muito bom, ele sorriu satisfeito, e eu mais satisfeita ainda.

Finalmente a trégua chegava para minha felicidade.

-Isso sim que é bonito de vê. Quando eu era criança quase fugi com um circo, meu pai foi me buscá e me levou pra casa debaixo de tapa. Durante uma semana a tristeza me derrubou quando o circo foi embora e eu fiquei.

Aquilo era uma tremenda novidade para mim, achei interessante e pedi que contasse mais detalhes, ele se recusou e retrucou:

-Esse mágico é um bocó!

Ai meu Deus, do que será que ele gosta! O que ou quem não terá defeito em sua opinião.

- Oia bem, pensa um pôco. Tem um monte de gente do lado dele e tem muita gente veno ele como nóis, vão descobrí como ele faiz a mágica, já, já vai aparecê um ladino fazeno as mágica dele. Mais é besta mesmo!

Cansada de tentar entender o motivo das perguntas e observações dele, resolvi convidar esse terrorista para tomar um cafezinho, coisa que ele nunca recusa. A estratégia não deu certo.

-Faiz o café e tráis aqui pra mim, com açúca, tô veno o mágico.

Concordei e sumi para dentro da cozinha. Finalmente um pouco de ar fresco. Demorei de propósito para fazer o café, precisava de um tempo. Escutei ele me chamando, e não pude mais fugir.

- Fia corre aqui!

O chamado dele exigia urgência.

Fui depressa e levei o café.

Ele pegou a xícara e sem mais nem menos, me manda outra pergunta.

-Teu café tá bem gostoso, mais me diz como o homem sabe que eu tenho dor nas costa e não durmo bem, acordo a noite inteira para i fazê xixi, vou no banheiro porque odeio penico, mas porque ele acha que o colchão vai me curá, vai me fazê dormi bem?

-Vovô, eles querem dizer que o colchão quando é velho ou é ruim, prejudica a coluna e não deixa a pessoa dormir bem, eles dizem que é por isso que a pessoa não dorme bem, fica nervosa, precisa comprar o colchão que eles vendem para dormir bem. Entendeu?

-Claro, mais não dianta nada, era bom se resolvesse o pobrema do xixi, daí eu dormia bem, será que eles sabe resolvê o pobrema do xixi também? Senão não dianta comprá o colchão dele.

Eu queria me matar. Fugir. Não respondi. Mudei de canal. Era desenho animado.

Ele sorriu todo satisfeito.

- Eu gosto de ver isso aí, os bicho é muito engraçado e colorido. Faiz armadilha bem interessante. Divérti a genti.

A criançada tamém gosta demais, porque só passa correria, sôco, um querendo judiá do outro, um quereno enganar o outro, a criançada adora coisa mar feita e eu tamém. Deixa aí que vou ficá veno. Vai fazê arguma coisa que eu fico sozinho. Não precisa ficá grudada ni mim. Mas não demora muito.

Dei um beijinho naquele crânio querido e maluco demais, saí antes que ele se arrependesse de me mandar embora.

Ainda bem que não passou jornal em quanto eu estava mudando de canal. Seria o caos.

Longe dele comecei a pensar nos comentários dele, quando escutei seu chamado.

-Vem cá, me diz uma coisa.

Fiquei gelada, chegou a hora do juízo final, fiquei firme, gelada, mas firme!

-Isso aí, televisão não é feita para ensiná as coisa? Será que eles pensa que todo mundo é burro? Porque eles insina a abrí garrafa de refrigerante, lavar a cabeça para fica com os cabelo briando como um espêio, passá desodorante, escová os dente, guiar carro, coisa que a gente sabe. Eles podia ensiná como vivê num mato quando a gente fica perdido, conhecê pranta pra matá a fome, onde achá água, fazê prantação, fazê ginástica, pintá quadro, desenhá, cozinhá comida simpres pra quem não tem muito dinhêro, musica com cantor normar não com os que parece que tão tendo ataque. Mas eles só ensina coisa que tudo mundo sabe, o resto é só tristeza, briga e mardade, pôca vergonha, eles rola na cama fazeno semvergonhice, os outro grita insistino quereno que você compre coisa que não precisa porcausa que você vive muito bem sem elas. Qué sabê dum causo, prifiro ficá lá fora mexeno na terra, vô podá a tua rosera, já tá até passano da hora de podá. Isso eles não ensina. Você que é esperta sabe podá rosera?

Fiquei com cara de tacho!(como ele diz)

-Infelizmente não, mas o senhor me ensina?

-Claro, e depois você ensina pros teus fío e neto, arguma coisa que preste!

Eu fiquei sentada, meio apatetada, tentando digerir tudo aquilo. Desliguei a TV, levantei e saí da sala, agora vou aprender a podar a roseira.

Mais tarde vou pensar com carinho nas considerações feitas por ele. Parece pura loucura de um cérebro intrincado demais, mas que alguma razão ele tem não resta duvida.

Ah! Velhinho bandido, deu um nó nas minhas “idéias”.

M.H.P.M.

Helena Terrível.