O Crack

Às vezes perco meu foco central, saio da pista pela contramão, ando num ziguezaguear incessante. Acordo e percebo que não passou de um sonho, enxugo o rosto com água morna, da torneira, respiro fundo e vou trabalhar. Logo à frente, após duas quadras de completa monotonia, estou novamente sonhando. Não. Começo a ziguezaguear, de um lado para o outro. Agora tenho certeza que estou acordado, com olhos abertos, sôfregos, infantis. O dia mal começou e já estou com náuseas, um embrulho me assola ao deparar-me com a primeira cena curiosa do dia. Muitas virão, logo hoje que meu time jogará. O menino, pouco mais de 12 anos, se muito, vende duas pedras de crack pra outro, negro, pequeno, não mais que 5 de idade. Fico ali, pareço um pasmado. Estou pasmado! A polícia logo a frente, em viatura, colete a prova de bala, revólver calibre 38 no coldre. O mesmo menino, de 5 anos, drogado, corre e rouba a bolsa de uma senhora que sai da sapataria. Precisa sustentar o seu vício, este menino. Gritos são ouvidos. A senhora, escandalosa, imponente, parece uivar feito um logo guará. Ladrão! Ouve-se ao longe, como em revoada, milhares de vezes. O som das vozes, o alarde, o eco. Os policiais, cães de guarda, que fazem patrulha na esquina, sacam suas poderosas armas e disparam. Dois tiros acertam as costas do menino de cinco anos. Desfalece o garoto que não teve tempo de sonhar. Seu corpo é magro, esguio. Seus dedos estão queimados pelo isqueiro, suas unhas sujas. Suas mãos, mesmo mortas, apertam com força as duas pedras de crack que acabara de comprar com o dinheiro roubado de alguém. Não houve tempo para fumá-las. Por certo teria alguns minutos de prazer, poderia ser os únicos que restavam em sua vida. Vivia pela droga. Os dois fardados, indiferentes, chutam o cadáver, constatam o óbito e saem. Será enterrado como um indigente qualquer. Sempre o via ali, na sinaleira. Devia morar debaixo de alguma ponte qualquer, cobrindo-se com papelões. O som dos carros era música para seus ouvidos. O sinal ainda não abriu. O dia começou como da grande maioria dos brasileiros. Verde! Acelero e me vou.